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Mónica Vermes
Almerinda Silva Lopes
Maria Cristina Correia L. Pereira
Ricardo da Costa
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O
conhecimento histórico e a compreensão do passado:
o historiador e a arqueologia das palavras1
Ricardo da Costa2
FIGURA 1
O que significam as palavras escritas? O que o escritor quis dizer
com aquilo quando escreveu? Por que escreveu? Quando? Como? Onde?
Para quem? Na belíssima iluminura medieval acima, o bispo
Virgil von Salzburg (c. 746-784) medita profundamente o texto que
acaba de ler. Sua mão direita apóia seu queixo, seus
imensos olhos perscrutam o livro aberto. A cena, reflexiva, é
emoldurada por seres fantásticos e sinuosos motivos geométricos.
Viena, Osterreichische Nationalbibliothek, Cod. 1224, fol. 17v.
I. A escolha do tema e o amor
“Amei apaixonadamente
o Mediterrâneo...”
(BRAUDEL, 1995: 21)
Não é à toa que Fernand Braudel
marcou época e que seu Mediterrâneo é um clássico.
O mínimo que se pode dizer a respeito dessa obra é
que ela ampliou as possibilidades do gênero em que foi escrita,
isto é, a História (BURKE, 1992: 56). E logo a primeira
frase do livro conjuga o verbo amar. Portanto, seguindo carinhosamente
a pista de Braudel, é preciso deixar bem claro uma coisa:
para se escrever boa história, “ou qualquer coisa boa,
na verdade” (TUCHMANN, 1989: 7), deve-se ter paixão,
amor pelo assunto. Embora contraditório, o conceito mais
preciso para definir o que quero dizer é paixão racional:
pensar nele, gostar dele, dormir com ele, discuti-lo apaixonada
e racionalmente com os amigos e inimigos. Sem esse envolvimento,
sem esse sentimento, sem essa paixão racionalizada e sem
esse amor, o historiador estará fadado ao fracasso, pois
não criará a comunicação necessária
e fundamental ao seu ofício. Cativar, envolver, dar prazer
ao leitor, encantá-lo, fazer com que ele tenha vontade de
virar a página, essas são obrigações
imperativas de quem lida com as palavras.
No entanto, infelizmente essa não é
uma prerrogativa em nossos cursos de História. Quando se
ensina a escrever, ensina-se a escrever mal. A regra (ainda) é:
quanto mais enfadonho o texto, mais científico e mais estimado
ele o será. A forma não é importante, o importante
é o conteúdo e a função daquilo que
você escreve. Palavras são palavras...3
Vou dar apenas um exemplo, dos muitos que presenciei.
Certa vez, há pouco mais de três anos, em uma aula
de um curso de pós-graduação lato sensu na
UFES, ao tratar da importância da forma para se chegar ao
conteúdo, dissertei para a turma sobre a necessidade do texto
agradável, de se buscar a beleza da forma. Estética
do belo. Estupefata, uma aluna retrucou que fazia História
para conscientizar as massas, não para dar prazer ao seu
leitor, tampouco para buscar a beleza. Uma parte significativa da
turma concordou com ela. Perguntei então como ela conscientizaria
as massas sem arregimentar leitores: como ela conquistaria seu leitor,
futuro revolucionário, se não tivesse um bom texto?
Ainda brinquei com isso: disse a ela que, depois de uma noite de
amor com seu marido, que pedisse a ele, satisfeito, saciado e esgotado,
que ouvisse a leitura de sua monografia. Se de bom grado ele aceitasse
e gostasse do texto, e só se ele gostasse do texto, ela poderia
então me entregar o trabalho. Caso contrário, eu seria
o único a ler a monografia, e ainda contra a minha vontade.
A turma riu à vontade. Sinceramente, ninguém
acreditou que o marido ouvisse ou lesse a monografia da menina revolucionária.
Ou seja, quase todos escreveriam suas monografias somente para o
professor dar a nota, pouquíssimos estavam ali por prazer
ou porque sinceramente gostavam de História. Quem eles conquistariam?
Depois das gargalhadas de todos, perguntei à
aluna: como é que ela pretendia fazer a “revolução
da conscientização das massas” a partir de seu
texto se nem seu marido o leria, somente eu, pobre, infeliz e oprimido
professor, e mesmo assim obrigado pelas circunstâncias? A
coitada da menina não me respondeu, parece que ficou em crise
– e eu nunca soube se ela mudou de idéia a respeito
(bem, li seu trabalho e, infelizmente, foi muito doloroso lê-lo).
Assim, é fundamental que o historiador, antes
de tudo, ao escolher o tema de sua pesquisa, o faça porque
gosta muito do assunto, porque se apaixonou por ele, e não
porque um professor sugeriu (ou impôs) como um tema original
e importante para a conscientização das massas, ou
para “fazer do homem o construtor consciente de seu futuro”
(FONTANA, 1983: 10).
II. A abordagem dos documentos históricos
e o amor
Da paixão pelo assunto, passo ao ponto seguinte,
o amor, natural conseqüência do primeiro. De antemão,
deve haver uma postura metodológica essencial presente no
historiador em seu processo de reconstrução histórica:
o amor. Pois o exercício de apreensão e compreensão
do passado, do passado que aconteceu, do passado registrado, é
como o próprio ato de educar: é um ato de amor, amor
na plena acepção da palavra, um dar sem esperar nada
em troca. Em relação à História, trata-se
de um olhar para trás e desejar apenas entender o que aconteceu,
participando de uma perspectiva comum com o texto estudado (GADAMER,
1998: 59).
O historiador é um voyeur. Em um sentido
metafórico, é um voyeur necrófago. Neurótico
obsessivo por excelência, ele se interessa pelos mortos. Os
mortos nos afetam (SCHUBACK, 2000: 20). Esse interesse mórbido
pelo passado faz com que ele leia o que os mortos escreveram, textos
muitíssimo desinteressantes para a maioria dos mortais comuns.
Ao ler aqueles textos produzidos, ao ver aquelas imagens pintadas
e esculpidas, ele faz uma regressão: uma regressão
temporal. E para que essa regressão temporal amorosa seja
fruída saborosamente e livre de preconceitos, o historiador
não pode e não deve estar contaminado pela tentação
de possuí-las, de dominá-las, de alterá-las
com suas palavras (ou mesmo destruí-las), mas sim entender
aquele tempo que escolheu para devanear (MATTOSO, 1988: 18). O passado
aconteceu, não temos como alterá-lo (GADDIS, 2003:
29); o que devemos fazer, no mínimo, é não
ocultar os fatos.
Vou dar o exemplo de dois conhecidos historiadores
do público brasileiro que, para minha imensa tristeza, ocultaram
fatos que conheciam e que poderiam alterar significativamente a
percepção de seus leitores: Edward Carr e Eric Hobsbawn.
O primeiro, em seu Que é História? (1982), foi omisso
a respeito dos horrores, das brutalidades e das perseguições
que sabia terem acontecido na União Soviética. Em
seu livro, ele ocultou esses fatos que conhecia, em nome da idéia
de progresso, e também “para dar um significado final
à revolução” (GADDIS, 2003: 146);
FIGURA 2
Soldados da União Soviética enterram prisioneiros
mortos de fome nos campos de concentração (Gulags),
no chamado “enterro no gelo”. Repare que mesmo só
com mortos, há guardas com metralhadoras e cães acompanhando
o cortejo fúnebre.
Este é um dos 200 desenhos feitos pelo coronel Danzig Baldaiev,
integrante da polícia política soviética de
1947 até meados da década de 80. Durante anos o coronel
percorreu os gulags na Sibéria, interessado nas tatuagens
dos presos e, assim, registrando todas as atrocidades (em 1999 os
desenhos foram expostos ao mundo ocidental em um premiado especial
da BBC de Londres sobre o gulag, produzido e dirigido por Angus
Macqueen). Segundo o jornal russo Iztvestia (de Moscou), o comunismo
exterminou 62 milhões de pessoas, de 1917 a 1987. Os historiadores
acreditam em uma cifra menor: 20 milhões...
Hobsbawn, igualmente, desde cedo sabia das atrocidades
cometidas pelo comunismo soviético, mas somente após
o fim do regime teve coragem de dizer que “subestimou”
aqueles horrores – como se um horror já não
fosse suficiente. Em sua autobiografia, Hobsbawn diz ter um arrependimento
retrospectivo, pois reconhece que não reconhecia limites
ao preço que exigia que os outros deveriam pagar para que
sua utopia se realizasse (HOBSBAWN, 2002: 219-220).
FIGURA 3
Orgulhosos por cumprirem seu dever, quatro comandantes de campos
de concentração soviéticos posam para uma foto.
Posteriormente, a filha de um preso escreveu “assassinos”
(no alto, à esquerda). Publicada em APPLENBAUM, Anne. Gulag.
Uma história dos campos de concentração soviéticos.
São Paulo: Ediouro, 2004.
Entendo o que aqueles historiadores fizeram –
omitir. Os homens omitem coisas com freqüência. Mas não
compartilho essa postura. O que sinto em relação a
isso é tristeza e uma profunda pena. Pois para se fazer boa
história, deve-se ser honesto, não ocultar nada que
se saiba ter acontecido. O historiador que coloca sua ideologia
ou seu sistema explicativo acima da História, tem diante
de si a tentação de preferir fatos que se ajustem
à sua idéia (TUCHMANN, 1989: 15), e ocultar o que
sabe que pode fazer com que seu leitor discorde dele. Nesses casos,
ele é um propagandista político, nunca um historiador.
Para esses, a História é apenas um instrumento a serviço
de uma causa, não um fim em si.
Para que isso não aconteça, para que
a prática do historiador seja verdadeira, para que sua paixão
seja racional e não obscureça sua capacidade de pensar
e de julgar, deve-se ter amor ao passado, não esperar nada
dele, não querer que ele tenha sido outra coisa a não
ser o que ele realmente foi. Se por um lado, não podemos
ocultar nada que saibamos ter acontecido, por outro, não
devemos ter um comportamento de suspeita e de malícia e querer
ver o que não está escrito, subentendendo tudo o que
está registrado como um depoimento de segundas intenções.
Henri Marrou definiu muito bem a atitude do verdadeiro historiador.
Não podemos ter com as testemunhas do passado uma atitude
rabugenta e carrancuda, como se elas estivessem a priori mentindo
e ocultando algo. Essa, para o historiador francês, é
a atitude do mau investigador, para quem todos são culpados
até prova em contrário. Devemos ter uma posição
oposta, pois em História realizamos uma investigação
retrospectiva, ou, como denominou Carlo Ginzburg, o paradigma indiciário
(GINZBURG, 1991: 171).
A suspeita a priori das fontes, ao invés
de ser uma qualidade, é uma superexcitação
do espírito crítico. Quando o historiador age dessa
forma, não consegue reconhecer o significado real, o alcance,
a profundidade e o valor dos documentos que estuda. Uma atitude
desse tipo é tão doente e perigosa em História
como na vida cotidiana. Nesse caso, o historiador é como
aquela pessoa que sempre vive desconfiada, com medo de ser enganada
ou iludida (MARROU, 1978: 78-79), um pouco semelhante a um número
não desprezível de colegas professores universitários.
Assim, ao ler o depoimento de Hobsbawn, embora o
considere imperdoável, eu acredito que ele tenha sido realmente
sincero: a força da utopia socialista foi tal em sua mente
que fez com que ele fosse induzido ao erro e omitido coisas importantes
que sabia terem ocorrido na União Soviética. Essa
crença em mim torna seu depoimento ainda mais dramático,
pois a franqueza e a honesta busca de Hobsbawn pela História
não ocorreu em seus textos sobre o socialismo real. E isso
é particularmente triste pela enorme estatura daquele historiador.
III. A hermenêutica imaginativa
Para conseguir fugir da armadilha da seleção
viciada dos textos, para se desvencilhar da tentação
da mentira e da ocultação das informações
que se tem acesso, enfim, para se fazer uma boa e apaixonada história,
o historiador deve sair de si mesmo, deve se tornar acessível
e ir ao encontro do outro (MARROU, 1978: 71). Esse esforço
histórico só é possível se há
nele o desejo de se enriquecer, de estar disponível a ouvir
o que os documentos históricos têm a revelar, e não
projetar sobre eles idéias ou teorias preestabelecidas. O
passado pode nos enriquecer apenas se o procurarmos livres de qualquer
tipo de censura prévia (FERNANDES, 1999). Esse comportamento
mental de amor que proponho para o historiador deve ser um pouco
como o ato de fé da sabedoria religiosa: “A sabedoria
que reside no núcleo das religiões não se entrega
ao olhar malicioso. É isto que Cristo quer dizer quando pede
que nos tornemos como crianças” (CARVALHO, 1997).
Em contrapartida, sabemos que o movimento de encontro
ao outro é sempre antecedido por um preconceito, por uma
pré-compreensão. Sempre construímos ou possuímos
idéias a respeito daquilo que nos propomos estudar. Para
dissipá-las, o historiador deve anteceder sua leitura com
uma reflexão de suas idéias pré-concebidas.
Ele deve investigá-las e se purificar delas. Isso é
o que Gadamer chama de radicalização do ato de compreender
(GADAMER, 1998: 62 e 65). A expectativa é que o texto que
está sendo lido informe algo ao historiador – e é
por isso que não se deve ter premeditadamente uma atitude
de suspeita com o texto. Pois como se poderia esperar uma informação
de algo que se suspeita? Pelo contrário, devemos estar abertos
à riqueza e à alteridade da informação
que o texto nos traz.
Essa pré-compreensão, esse pré-conceito,
na mente de quem lê, deve ser permanentemente observado e
repensado, pois cada vez que nos aproximamos de um texto de época,
nossos esboços de sentido são alterados e tendem a
ser aperfeiçoados (GADAMER, 1997: 404). Esses esboços
são reinterpretados a cada leitura feita: é o chamado
círculo hermenêutico. A figura perfeita do círculo
representa o desejo da busca e especialmente as repetições
das leituras sistemáticas. O objetivo dessas releituras é
assegurar a construção do tema científico,
elaborando conceitos a partir da coisa em si (HEIDEGGER, 1988: 141),
não o que falam dela. O objetivo, além de fortalecer
uma interpretação a partir do texto, é confrontar
a verdade daquele texto com as opiniões prévias existentes
no leitor.
A melhor forma de resistir aos preconceitos e pré-compreensões
existentes e persistentes em nós é sempre retornar
aos documentos de época, sempre realizar o círculo
hermenêutico de leitura do passado. Lendo, relendo e confrontando
nossas idéias. São os textos que devem dar o tom,
a natureza e o conteúdo do que se deseja dizer. A interpretação,
nesse sentido hermenêutico, está quase fiel às
palavras escritas na época que se escolheu para pesquisar
e conhecer.
Então, cabe uma pergunta: como sabemos exatamente
o sentido preciso das palavras que lemos? Os hermeneutas radicais
dirão que um resultado interpretativo definitivo é
impossível: sempre teremos em cada leitura uma nova interpretação,
uma nova perspectiva e uma nova abordagem do texto lido. É
possível. No entanto, situo-me em um meio-termo. Não
creio que exista esse ad infinitum interpretativo. Tenho muita confiança
em nossa capacidade de entendimento para me render a uma impossibilidade
dessa natureza. Mas para explicitar melhor o que penso ser uma hermenêutica
realmente interpretativa, vou recapitular rapidamente o que já
disse aqui antes de passar à busca do sentido das palavras.
Como sabemos, o historiador lida com palavras. Palavras
que lê do passado, palavras que fala no presente, palavras
que escreve para o futuro. Quando o historiador se debruça
sobre um passado, quando se apaixona e se dispõe a devanear,
a percorrer e imaginar um determinado tempo que lhe é necessariamente
diferente, ele deve fazê-lo, como disse antes, de uma maneira
racional e amorosa, nunca o distorcendo ou adaptando-o aos seus
preconceitos. Esse é a primeira postura metodológica.
A segunda postura intelectual íntima é
uma espécie de autocrítica: antes de ler o documento
que selecionou, o historiador deve confrontar suas opiniões
preconcebidas a respeito daquele assunto que decidiu investigar,
opiniões que foram construídas quase sempre com falsas
premissas, baseadas no senso comum ou em juízos seculares,
mas pouco postas à prova e muitas vezes sem qualquer base
documental. Gadamer diz que devemos radicalizar esse ato antecipatório
de compreender e fazer uma purificação mental, livrando-nos
dos juízos perniciosos em busca da melhor compreensão.
Só então devemos ir ao documento, ao texto, e recuar
no tempo.
Se percorrermos esse caminho, ao passarmos à
fase de leitura do documento quase sempre nos depararemos com uma
diversidade humana desconcertante, com uma variedade e uma riqueza
de códigos de expressão que dificultará uma
visão racional e sistematizada (BATANY, 2002: 383), pois
a História é sempre o estudo do particular, do irrepetível,
do único. Mas que isso não nos desanime e nos leve
por uma trilha mais fácil. Georges Duby nos conta que, muitas
vezes, dispunha sobre sua mesa de trabalho as fichas que havia anotado
dos documentos que lera, textos dos séculos X-XIII. Aquele
contato era, para o grande historiador, um cativante jogo propiciatório
de cartas: Duby esperava que daquela aproximação surgisse
alguma revelação. Para ele, a busca do sentido daquelas
palavras, sentido que se havia perdido na fumaça do tempo,
era um jogo cativante cujos encantos eram semelhantes aos da exploração,
da investigação e até mesmo da adivinhação
(DUBY, 1993: 41-42 e 51-52).
IV. A arqueologia das palavras
Após esses procedimentos preparatórios
e compreensivos, o historiador finalmente lê. E antes de interpretar
o que lê, ele busca o sentido das palavras lidas, o que os
homens do passado quiseram dizer, o que tentaram dizer com aquilo,
relacionando aquele conteúdo com seu contexto histórico
e social, pois os textos são, antes de tudo, um produto histórico
(TUCK, 1992: 274-275).
Nesse processo de reconstrução histórica,
ainda há a necessidade imperativa de se reconhecer no texto.
De algum modo, o historiador deve tentar se ver espelhado no que
lê, deve tentar se transportar para o espírito daquela
época e compartilhar a experiência comum de humanidade
existente entre quem observa – no caso, quem lê o que
aconteceu – e quem está sendo observado – quem
escreveu o que está sendo lido. Márcia Schuback afirma
que nessa busca de humanidade comum, de reconhecimento existencial,
o intérprete consegue lentamente achar a sintonia do ritmo
do texto, o tempo comum entre ambos (SCHUBACK, 2000: 19 e 33), um
tempo imaginário que se encontra na mente de quem lê
e que liga o passado ao presente.
Essa busca da afinidade existencial entre o leitor e o texto não
é novidade. Marc Bloch já havia percebido a necessidade
da existência, tanto na natureza quanto nas sociedades humanas,
de um fundo permanente por trás da passagem do tempo, pois
sem esse pano de fundo existencial que damos o nome de humanidade,
os próprios nomes homem e sociedade não teriam qualquer
significado (BLOCH, 1997: 99). Para se compreender os homens do
passado devemos, portanto, partilhar algo de seus sentimentos, de
seus pensamentos e de suas perspectivas (LORAUX, 1994: 60). Isso
nada mais é que buscar o anacrônico para se chegar
ao diacrônico, o mesmo paradoxo que destaquei no início
desse texto entre a necessária paixão pelo assunto
e o igualmente necessário racionalismo para tratá-lo.
Paixão racional, anacronia diacrônica: parece que o
historiador está sempre em uma tensa faixa tênue que
marca a distinção entre dois limites opostos.
Essa transposição para os processos
espirituais de outro sujeito é, de certa forma, uma interpretação
psicológica de si mesmo, uma possessão (SCHUBACK,
2000: 18), uma possessão histórica. Ao tentar se reconhecer
e se ver espelhado no texto, ao realizar aquele processo mental
de compartilhamento do que é humano e sempre demasiado humano,
o historiador também realiza um processo psicanalítico
(GAY: 1989): ele se auto-psicanaliza. Ou, dizendo hermeneuticamente,
a História é um caso que faz parte do compreender
existencial (KOSELLECK, 1997: 69). Para isso, para sentir o texto
em si, deslocando-se para o tempo passado e permanecendo no tempo
presente, o historiador deve fazer uma projeção temporal
de sua própria maturidade. Sim, a História é
para os maduros. Em outras palavras, o historiador-intérprete
deve incorporar o tempo passado como um médium e ter a humildade
de saber o quanto é insignificante em relação
ao que o precedeu. Isso ajuda – e muito – a inclinação
adolescente (e de muitos historiadores) de relacionar o mundo para
si, ao invés de relacionar-se com o mundo (GADDIS, 2003:
20).
Vou dar um pequeno e simples exemplo
prático dessa incorporação histórica.
Como se sabe, os homens medievais deram um grande destaque em seus
escritos aos sete pecados capitais (luxúria, gula, inveja,
preguiça, avareza, orgulho e ira) – a propósito,
teremos nesse ano de 2004 um congresso em Porto Alegre que tratará
desse interessantíssimo e sempre atual tema.4
Bem, ao traduzir dois textos em forma de sermões do
filósofo Ramon Llull (1232-1316) sobre os pecados capitais
para apresentar naquele congresso, à medida que traduzia,
fui tentando “sentir” em mim, em minha mente e em meu
corpo, o que o autor queria exemplificar, naturalmente de uma forma
muito menos angustiante e “culpada”.
Por exemplo, quando o filósofo catalão,
no distante século XIII, se refere ao “homem glutão
e guloso” como uma pessoa que é “escrava de seu
ventre”, que “vive para comer e não come para
viver”, que vai às festas sem ser convidado só
para comer e, por tudo isso, tem seu ventre sempre trabalhando e
dilatado (que ele chama de “sanfonado”), eu tentei imaginar
e me lembrar quantas e quantas vezes bebi muito, ou comi e me empanturrei
de comidas mesmo sem ter fome, e o sentimento terrível e
posterior que senti àquela gula: uma grande depressão
e tristeza por ter comido demais, quando então prometia a
mim mesmo que, no dia seguinte, não faria mais isso para
melhorar minha silhueta... Então relacionei todas essas minhas
experiências físicas e mentais com o texto, associando-as
mentalmente com o tom de horror que o escritor do século
XIII se referiu ao glutão. E embora muitas das metáforas
que o autor escreveu em seu diálogo com Deus não reverberassem
inteiramente em mim, fazendo com que eu não alcançasse
completamente aquela experiência comum de humanidade a qual
se referiu Marc Bloch e Márcia Schuback, eu traduzi, corrigi,
li e reli aqueles textos, às vezes em voz alta, às
vezes declamando, todas aquelas exclamações, repetições
e exortações que o filósofo escreveu, tentando
me ambientar e entrar em sintonia com aquele tempo, ao mesmo tempo
tão distante e tão próximo de nós, pois
muitas daquelas sensações ainda compartilhamos hoje.
Como se vê, essa arqueologia das palavras
ultrapassa a decodificação da língua em que
o texto foi escrito e a descoberta correta de seus sentidos semânticos
(SCHUBACK, 2000: 33). Para encontrar a expressão da sensibilidade
coletiva registrada no texto, além de se chegar ao implícito,
aos silêncios e atos falhos do escritor (FRANCO JR, 1999:
17), o historiador deve sentir e incorporar o sentido profundo das
palavras que lê. A hermenêutica imaginativa de Márcia
Schuback que tratei aqui aprofunda o campo de ressonância
compreensivo que o historiador deve ter para ressuscitar e fazer
compreender aos seus contemporâneos o pensamento registrado
de outro alguém (SCHUBACK, 2000: 36).
V. Conclusão: a História é
o passado histórico do historiador
Feitas essas considerações a respeito
dos procedimentos preparatórios que antecedem a leitura e
a forma de ressuscitar o passado, concluo relacionando a hermenêutica
imaginativa com o sentido profundo do que é a História
e qual a melhor utilização que se deve fazer dela.
Recentemente, tive a oportunidade de expressar minha
opinião a respeito da utilidade prática do conhecimento
histórico (COSTA, 2004). Existem basicamente duas formas
de entendimento do uso do conhecimento do passado que acumulamos:
1) na tradição marxista, nos “marxismos”,
o passado serve para que o utilizemos como um instrumento de combate
às injustiças e às desigualdades sociais atuais.
Assim, o historiador cumpre sua função, tornando-se
o verdadeiro intelectual orgânico gramsciano. Nesse sentido,
a História não é um fim em si, e sim um instrumento
para uma finalidade política específica: ela é
uma forma intelectual de combate (HEERS, 1994: 188-189) e de conscientização
das massas; 2) em uma outra perspectiva, a História é
uma forma específica de conhecimento que busca a compreensão
do passado que aconteceu, e, como disse, o que aconteceu não
pode ser alterado (GADDIS, 2003: 29). Essa busca é autolegitimadora.
Se o conhecimento do passado é útil atualmente para
conscientizar as massas ou não, é outra questão.
Na palestra de hoje tentei mostrar que a História
com H maiúsculo não pode ser exercitada como apoio
a um projeto político ou a outra finalidade qualquer. Ela
é um bem em si, e essa é a melhor forma dela ser buscada
por quem a deseja. Como a ginástica é boa para o corpo,
a História é boa para a mente. De nada adianta todo
o procedimento hermenêutico e arqueológico, de nada
serve o amoroso preparo consciente de retorno no tempo se não
apreendemos a História por seu valor intrínseco. Como
bem disse o filósofo Simon Blackburn, comemos pão
e a reflexão não coze o pão. Mesmo assim sempre
refletimos, porque desejamos compreender-nos. Isso é um bem
em si, e esse bem é um momento em que nos libertamos das
questões práticas da vida (BLACKBURN, 2000).
A História até pode ser buscada quando
queremos uma explicação para algo no presente. Esse
é o passado prático, como afirma o historiador Michael
Oakeshott. No entanto, esse passado é restrito ao nosso pequeno
universo, à nossa família, cidade, país. Mas
essa perspectiva é pobre, é paupérrima. Ela
impede o historiador de abrir suas possibilidades intelectuais,
pois limita seu olhar para o passado ao alcance de seus olhos, ao
seu horizonte restrito. Por exemplo, nessa visão, um brasileiro
não poderia estudar a cultura chinesa, pois ela de nada explica
o presente de nosso estado nacional.
Por isso, a História é, sobretudo,
um passado histórico, aquele passado que é buscado
pelo sincero desejo de saber, de conhecer, de entender (OAKESHOTT,
2004). Ele é um passado por si, e é ele quem forja
o verdadeiro historiador. Só com essa amplitude e generosidade
podemos fazer com que a compreensão do outro se realize plenamente
e a História cumpra seu papel: fazer do historiador um intelectual.
E que esse retorno ao passado do historiador voyeur-necrófago
seja feito com amor. Sem ele, nada se realiza plenamente.
Fontes
- BATANY, Jean. “Escrito/Oral”. In:
LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval I. São Paulo: EDUSC
/ Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 383-395.
- BLACKBURN, Simon. “Para que serve a Filosofia?”. Internet:
http://www.criticanarede.com/fa_10excerto.html
- BLOCH, Marc. Introdução à História.
Lisboa: Publicações Europa-América, 1997.
- BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo na época
de Filipe II. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995.
- BURKE, Peter. A Escola dos Annales. 1929-1989. A Revolução
Francesa da Historiografia. São Paulo: Editora Unesp, 1992.
- CARR, E. H. Que é História? Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1982.
- CARVALHO, Olavo de. Entrevista publicada em Minerva - Informe
Filosófico da UFPE, n.º 5, maio de 1997. Publicada na
Internet: http://www.geocities.com/Athens/Acropolis/6634/olavo2.htm.
- COSTA, Ricardo. “Para que serve a História? Para
nada...”. Internet: http://www.ricardocosta.com/pub/para_que_serve.htm
- DUBY, Georges. A história continua. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1993.
- FERNANDES, Raúl Cesar Gouveia. “Reflexões
sobre o Estudo da Idade Média”. In: Revista VIDETUR
– 6. São Paulo: Editora Mandruvá, 1999. Internet:
http://www.hottopos.com.br/videtur6
- FONTANA, Josep. “Apresentação”. In:
CARDOSO, Ciro Flamarion & BRIGNOLI, Héctor Pérez.
Os métodos da História. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1983, p. 07-10.
- FRANCO JR., Hilário. O ano 1000. Tempo de medo ou esperança?
São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
- GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica.
Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas,
1998.
- GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método – traços
fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis:
Editora Vozes, 1997.
- GADDIS, John Lewis. Paisagens da História. Como os historiadores
mapeiam o passado. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
- GAY, Peter. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1989.
- GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. Morfologia e história.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
- HEERS, Jacques. A Idade Média, uma impostura. Lisboa: Edições
Asa, 1994.
- HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Editora Vozes,
1988.
- HOBSBAWN, Eric. Tempos interessantes. Uma vida no século
XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
- KOSELLECK, Reinhart, GADAMER, Hans-Georg. Historia y hermenêutica.
Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1997.
- LORAUX, Nicole. “Elogio do anacronismo”. In: NOVAES,
Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994, p. 60.
- MARROU, Henri-Irenée. Sobre o conhecimento histórico.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
- OAKESHOTT, Michael. Sobre a História. Rio de Janeiro: Topbooks,
2003.
- SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante. Para ler os medievais.
Ensaio de hermenêutica interpretativa. Petrópolis:
Editora Vozes, 2000.
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Janeiro: José Olympio Editora, 1991.
- TUCK, Richard. “História do Pensamento Político”.
In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História. Novas perspectivas.
São Paulo: Unesp, 1992, p. 273-289.
Notas
1
- Texto apresentado em 02 de abril de 2004.
2
- Professor de História Medieval no Departamento de História/Cchn/Ufes.
Home-page: www.ricardocosta.com
3
- “Palavras são palavras / E a gente nem percebe o
que disse sem querer / E o que deixou pra depois...” –
Um jeito estúpido de te amar, canção de Isolda
e Milton Carlos.
4
- Seminário Internacional “Os pecados capitais na Idade
Média”, evento organizado pelo Grupo de Trabalho de
Estudos Medievais da Associação Nacional de História
- Núcleo do Rio Grande do Sul (ANPUH/RS) e que acontecerá
entre os dias 13 e 15 de setembro de 2004 na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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