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Crítica
à arte pós-moderna1
William Golino2
A obra de arte moderna possui acumulados conhecimentos práticos,
específicos, criativos e dialéticos, inexistentes
na obra pós-moderna, que representa com formas anacrônicas,
repetitivas e homogêneas um discurso opinativo.
*
As obras pós-modernas vêm sendo aclamadas
nos últimos 30 anos, especialmente a partir do final da década
de 1980, não só como legítimas e inquestionáveis
“obras de arte”, mas fundamentalmente como novas e até
revolucionárias, a despeito das formas repetitivas e homogêneas,
realizadas sobre padrões clássicos de composição
e aparência dos objetos (embora combatidos no discurso pós-moderno),
baseadas nas impressões pessoais dos seus autores, bem caracterizadas
pelo colecionismo de coisas antigas e fora de uso ou extravagantes,
pela decalcagem de formas e símbolos institucionalizados,
pelo apelo religioso conservador, pelos infindáveis módulos
repetidos e pelas homogêneas instalações, todos
compondo a forte base material da estética e da plástica
uniformizantes neoliberal3.
Em geral, suas imagens sugerem uma intensa intervenção
na vida, através da recorrente referência naturalista
aos problemas cotidianos4,
tratados com formas ideais e anacrônicas, inexistentes na
vida real sobre a qual pretendem se debruçar e, paradoxalmente,
apresentadas com um ar de inteligência superior por meio de
discursos senso comum, generalizantes e obscuros, quase ininteligíveis
tentando demonstrar a superioridade de quem escreve sobre tais obras.
As obras escolhidas como ponto de partida desta
crítica são dois exemplos típicos, entre tantos,
da ilustração pós-moderna (FIG. 1 - Atlas)
e da obra de arte moderna (FIG.2 - Aquarela nº 17); são
obras contemporâneas, com formas e estéticas opostas
entre elas: a primeira é uma aplicação do senso
comum sobre o imperialismo hoje, monolítico; a segunda é
resultado de práticas e estudos artísticos cuidadosos,
que articulam refinamento dos sentidos com especificidade artística.
Portas abertas para os mundos neoliberal e anti-neoliberal respectivamente;
representam bem suas estéticas e plásticas.
FIGURA 1
Atlas, 2003, (Da série assim é...
se lhe parece), Nelson Leirner
colagem s/ papel
70 x 40 cm, aproximadamente
Fonte: Bravo. São Paulo: Editora d’Avila, edição
especial, junho de 2003. p. 25.
FIGURA 2
Aquarela nº 17, 1998, Arthur Luiz Piza
pintura e colagem s/ papel
16 x 12,5 cm
Fonte: Piza: trabalhos recentes. São Paulo: Instituto Moreira
Sales, 2000. p. 31. Catálogo da exposição.
Foram escolhidas porque as obras destes autores
são referências distintas para a produção
contemporânea da arte no Brasil, influenciando jovens aprendizes
e seguidores das tradições modernas, vanguardistas
e críticas.
É sempre importante lembrar que ambos não
possuem um estilo único e que algumas de suas obras, como
acontece na produção de praticamente todos os artistas,
são contrárias aos estilos dominantes que cada um
possui5.
Os dois autores são sujeitos respeitáveis
e estas obras não são sínteses ou coroamentos
das suas produções, são apenas duas obras que
têm suas histórias particulares.
Há muita semelhança entre elas na
estrutura e nas formas e cores.
Usam o vermelho e o azul como cores dominantes,
sobre um plano mais uniforme e neutro em relação à
vibração destas duas cores.
Na parte inferior possuem uma forma destacada que
puxa nosso olhar, dinamizando bastante o quadro.
São colagens. Aquarela nº 17 é
também pintura, consolidando a diversidade artística
da obra e suas características criativas e críticas,
enquanto Atlas é feita com formas emprestadas de outros âmbitos
da vida. Isto não quer dizer que o artista não possa
recorrer às formas do mundo não artístico,
é apenas um sinal de que essa recorrência deve ser
muito criteriosa para que a obra não seja uma imitação
da vida.
Ambas tratam dos modos de ocupação
do espaço plástico. As formas, sempre integradas aos
conteúdos, evidenciam a história formal e temática
da obra, apontando para a trajetória artística dos
autores.
A composição de Atlas é uma
reprodução nítida da composição
de várias obras medievais baseada na divisão do quadro
em planos: o continente sul e afastado é o mundo inferior,
logo acima o domínio mais comum aos homens e na parte superior
a visão esclarecedora do destino irrefutável ou desejável,
além disto, apresenta o recurso maneirista e barroco da circularidade,
por meio da ocupação integral do espaço plástico
com formas repetitivas, dando continuidade aos jogos especulares
numa adaptação aos dias de hoje das relações
simétricas das obras barrocas e rococós. A manutenção
da parte inferior no canto esquerdo obedece aos padrões de
equilíbrio harmônico baseado na idéia de que,
por lermos da esquerda para a direita e de cima para baixo, nosso
olhar tende para a parte direita inferior do quadro, desestabilizando
a obra, logo, é necessário colocar algo que chame
a atenção do olhar para a parte esquerda do quadro
a fim de equilibrá-lo; junto à composição,
a aparência do quadro é uma bem humorada resposta afirmativa
ao desejo grego clássico de representar a natureza sem imperfeições,
o naturalismo idealizado de um mundo que tende ao absoluto.
Por outro lado, Aquarela nº 17, tem uma composição
basicamente oposta à de Atlas. Uma linha de força
diagonal corta o plano da esquerda superior para a direita inferior,
contrariando totalmente a pretensão do equilíbrio
harmônico baseado nos princípios ocidentais de leitura
de texto, reafirmando, com isto, que a imagem não pode ser
lida, mas vista, uma vez que seu equilíbrio ou sua estabilidade
está baseada na história da plástica e não
na lógica da leitura do texto -as formas e a apreensão
da pintura e da colagem artísticas são sintéticas
e as da linguagem são extensivas. A obra é assimétrica:
o plano plástico tem espaços e preenchimentos diferenciados
uns dos outros, as tiras maiores de pintura recortada e colada têm
uma direção quase transversal à tira menor
inferior, não criando a regularidade das linhas transversais,
muito características das obras clássicas, tanto das
anteriores ao modernismo quanto dos pastiches e paródias
pós-modernos. As tiras maiores são recortadas de um
plano pintado e coladas com relevo -opondo-se a Atlas que tem decalques
inteiros não produzidos pelo artista e colados uniformemente-,
estabelecendo uma tensão formal e visual muito rica por intranqüilizar
nossa visão, colocar uma dúvida sobre o que vemos,
enfim, questionar com formas a estabilização e a quietude
do nosso olhar. A não linearidade das tiras coladas e a irregularidade
da pintura dos seis planos fixam a relevância da continuidade
alterada das formas, eliminam a relação de distinção
entre figura e fundo e estabelecem as diferenças dentro das
semelhanças como modos, pelo menos razoáveis, de produzir
obras que são respostas positivas à unidade entre
conteúdo e forma e, ao mesmo tempo, firmam uma crítica
radical contra a individualidade neoliberal que homogeneíza
os indivíduos num fundo uniforme por meio das diferenças
individuais meramente discursivas -estranhamente uniformes para
seu propósito- e não realizáveis na prática
produtiva cotidiana.
Aquarela nº 17 é a concretização
da real e sutil diferença num universo de pressões
pela uniformização e pela submissão à
ordem estabelecida. Depreende-se desta obra, integrada às
críticas à textualização da vida, que
a pintura e a colagem são obras de artes plásticas
e não textos, como querem os defensores do pós-modernismo
com suas impressões e estórias sobre sintaxe da pintura,
linguagem do desenho, gramática da colagem etc. numa franca
tentativa de normatizar e engessar a produção plástica
em regras determinadas pela linguagem e formas reproduzidas constantemente
e, obviamente, inquestionáveis, a fim de evitar o desenvolvimento
do conhecimento crítico e libertador que a verdadeira obra
de arte promove.
Nos conteúdos há diferenças:
Atlas investe no panorama imagético e ideológico da
economia e da política de maneira mecânica e explícita,
tratando de tema não artístico -ou transformando em
arte -estetizando- um tema econômico e político-: a
hegemonia imperialista norte-americana; Aquarela nº 17 também
investe na imagem e na ideologia, mas em vez de tratar de um tema
não artístico, trata de arte e estética, apresentando
uma obra de arte contrária à chamada “arte”
definida e sustentada por este imperialismo, porque investe na pesquisa
particular da produção artística contínua
e constantemente aprofundada, obviamente integrada por mediações
diversas à economia e à política. Enquanto
Atlas é um discurso político travestido de “obra
de arte”, marcado pela adequação a formas pré-definidas
e pela uniformidade da representação, Aquarela nº
17 é uma obra de arte cujas formas e estéticas opõem-se
às formas e estéticas dominantes, apresentando uma
imagem marcada pela tensão cromática e formal, sem
qualquer adaptação a um modelo pré-existente.
Atlas é uma constatação apriorística
feita a partir de uma visão genérica e uniformizante
sobre o imperialismo norte-americano, Aquarela nº 17 é
a defesa silenciosa da beleza artística que contempla as
reais diferenças dos mundos artístico e não
artístico. Silêncio, tensão e diferença
real são três qualidades inadmissíveis pelo
imperialismo, ou, usando o termo específico do campo das
artes, pelo pluralismo pós-moderno.
Temos, então, que o imperialismo autodenominado
neoliberalismo elege a ilustração, mesmo que seja
aparentemente contrária a ele, como a “obra de arte”
típica de sua estética claramente conservadora, cujas
formas reproduzem a ordem ideal -e necessária- do atual mundo
globalizado. Por outro lado, o artista moderno, opondo-se ao pós-modernismo,
elege a obra de arte resultante de longa pesquisa artística,
expondo, entre outras coisas, o conhecimento acumulado pelo desenvolvimento
da produção artística. Atlas, com seu idealismo
taxativo, é a representação da obra derradeira
sobre o inexorável destino do mundo; Aquarela nº 17,
com sua liberdade construtiva, é mais uma obra no longo caminho
do modernismo que continuará, apesar das pressões
pós-modernas em defesa dos modismos estilísticos sem
qualquer pesquisa artística que supere criticamente -como
seus adeptos dizem fazer- a consagrada representação
formal clássica baseada nos jogos especulares e na uniformidade
da composição e da distribuição dos
elementos plásticos. Atlas é mais uma adequação
ao projeto imperialista e Aquarela nº 17 é a invenção
de outra arte oposta a este projeto.
Uma distinção de base entre as duas
obras é o trabalho artístico, a constante superação
das obras anteriores e a criação de uma plástica
nova em Aquarela nº 17, para além da reprodução
formal das montagens e do colecionismo que levam a Atlas: Piza investiga
e aprimora novas formas para cores e espaços e Leirner apresenta
uma visão ideal do cotidiano através de imagens homogêneas.
A crítica de Leirner durante os anos de chumbo
-a ditadura militar no Brasil nas décadas de 1960-70- junto
às críticas de Barrio, Oiticica e tantos outros, foi
relevante para modernizar a arte e radicalizar o compromisso político
dos artistas, porém, a reprodução desta crítica
evidencia a perda do domínio sobre a obra, que passa a dominar
o sujeito, que faz obras baseadas na criatividade reproducente =
que reproduz formas e conteúdos anteriores. Ao contrário,
a persistente pesquisa de Piza o leva a dominar seu trabalho e sua
obra, evidenciando sua ação modificadora da obra de
arte, uma ação efetivamente revolucionária,
pois aprofunda uma especialização constituinte a um
projeto maior de transformação radical das relações
sociais e dos seus produtos, promovendo uma real modificação
das relações dos homens entre si e com a obra de arte,
com vistas a transformá-los em sujeitos livres e críticos,
sem fazer alarde por meio de obras-propagandas de discursos políticos.
Enquanto Atlas é naturalista, adequado ao
status quo dominante, em que a “arte” e seus produtores
são reféns do mundo existente e que se pretende inevitável,
Aquarela nº 17 é uma representação da
autonomia da arte que propicia o refinamento dos sentidos e o aprimoramento
das relações sociais, por causa do movimento sensível
que cria no observador ao colocar-lhe uma dúvida sobre seu
modo de ver a obra de arte, além dos problemas formais já
analisados.
Atlas é uma apresentação irônica
de um presente exagerado a partir de uma visão de um futuro
que parece próximo, bastante sombrio, do que nos espera se
continuarmos no caminho que estamos trilhando na economia, na política,
na moral e, paradoxalmente, neste próprio tipo de “arte”,
mas ideal, homogênea e sem conflitos, como se a dialética
não existisse. Atlas, como a força do nome indica,
passa por cima das lutas anti-imperialistas, faz de conta que não
existe resistência ao projeto neoliberal e à sua moda
pós-moderna, simula a inexistência de história,
pois não tensiona o mundo limpo que nos apresenta: as caveiras
estão mortas e o império as aquieta sob o manto das
imagens institucionalizadas como legítimas representantes
do mundo necessário e real.
Obras como Atlas são mais um comentário
político pessimista e sem perspectiva, que evidenciam a impotência
da ação individual diante do imperialismo, que uma
crítica contra a nova ordem mundial. Suas formas são
adaptações às formas pré-existentes:
reproduz o planisfério com outras representações
consagradas (bandeiras, ícones populares e caveiras) sobre
ele. É uma representação de uma idéia,
de um modo de ver, um discurso transformado em obra plástica,
no qual as imagens exemplificam o senso comum sobre seus conteúdos.
A homogeneidade capturou o autor da obra, cujo grupo que representa
não conseguiu fazer-se presente com sua pretensão
de diversidade formal e seu discurso pró liberdade artística
e individual. O “artista” é um coletor que cola
sobre uma forma da realidade existente outras formas, também,
já existentes, criando uma imagem cuja aparência denuncia
sua acomodação a um estofo uniformizado. Trata-se
de propaganda política e não de obra de arte, é
a ilustração do discurso que constata uma realidade
e tenta se colocar contra ela, mas sua arma de luta é a sujeição
às formas dominantes e a adequação à
dominação que aparentemente combate, tão requeridas
pelo seu opositor, evidenciando o naturalismo idealista da obra.
Aquarela nº 17 é uma solução
para os modos usuais e consagrados de fazer aquarelas e colagens.
A forma inferior direita é distinta das formas usadas no
restante do quadro; não há uniformidade. As tiras
pintadas são coladas sem ocultar algo já conhecido,
sua aparência não reproduz uma aparência sobre
a qual se sobrepôs. As tiras de papel pintadas e coladas formam
uma imagem nova: é um plano pintado, cortado e montado com
inversões de posições e deslocamentos, criando
outros planos que formam um espaço que rompe com o plano
original, sem ocultá-lo totalmente. Além de não
cobrir uma imagem conhecida, não faz outra imagem conhecida,
cria uma forma nova, que nos leva a entender que o novo não
é a diferença absoluta em relação a
tudo que existe e existiu, o novo pode ser uma sutil e quase imperceptível
mudança para um olhar que pretende abarcar a totalidade do
que olha.
*
A ilustração, contrariamente à
obra de arte, substitui o conhecimento do fazer artístico
pela reprodução instrumental de imagens idealmente
planejadas; por ser técnico e ideal o resultado é
a repetição formal, rígida, desprovida de sutilezas
e delicadezas, sem gesto livre, previsível e com a supressão
do acaso, sugerindo, para a prática artística, a necessidade
irremovível de usar o cérebro discursiva e linearmente
e não dialeticamente, ou seja, deve-se inventar ou aceitar
uma história para aquém e além da obra, porque
a forma, muitas vezes mera curiosidade rápida, é pobre
e desinteressante, não convidando ao olhar.
Isso que os adeptos do pós-modernismo chamam
de “arte”, em quase todos os casos, não é
arte, é ilustração. A tentativa neoliberal
de transformar em arte alguma outra coisa, acaba por reproduzir
o que foi ultrapassado pelo modernismo, como se tivesse que inventar
o moderno; seus autores pretendem uma eterna novidade coletada num
eterno presente, por isso admitem todos os símbolos como
atuais e todas as formas como contemporâneas, porém,
contrariando esse gigantesco presente, fazem alguns ajustes nas
formas (recortes, acréscimos e estilizações),
retirando-lhes a história ao fragmentá-las.
A constante exposição uniformizada
e uniformizante de partes ocas do passado induz à enganosa
idéia de equilíbrio ou estabilidade, por causa da
regularidade linear das formas e da ausência de conflitos
simbólicos em uma mixórdia de valores. Uma estabilidade
requerida pelo neoliberalismo porque na prática impede o
progresso minimamente democrático das relações
sociais e no discurso solicita a dinâmica da revolução
individual para iludir sobre a uniformidade contida na reprodução
social. Ao combinar a reprodução imobilizante com
o ideal da individualidade dinâmica, aquieta-se o indivíduo
e cerceia-se suas pretensões, porque na vida não há
lugar para a realização das idealizações,
a não ser por meio de práticas impositivas e excludentes.
O ideal da diferença vive da apreensão
das relações e dos objetos do seu tempo presente e
espaço particular, feita de modo individual e variado, mas
como esse modo é resultante e formador da história
humana, seu projeto de diferenciação, efetivamente
ancorado no desenvolvimento progressivo das relações
sociais, não resolve a pressão existente entre uma
prática de contenção ou supressão das
diferenças reais (exceto nos campos da economia e da política
que explicitam essas diferenças na prática cotidiana,
embora tentem ocultá-la) e um ideal de identidade individual
como solução para nossa crescente homogeneização
social, respeitadas as particularidades e os conflitos entre e intra
classes nas sociedades pós-modernas: as diferenças
não são efetivamente aceitas e incorporadas pelo conjunto
social e se contentam em ser um tímido alerta contra a uniformidade,
indo superficial e textualmente contra a reprodução,
mas aceitando viver uma vida dupla: para sobreviver reproduz as
condições materiais da vida sob a forma das homogeneidades
e, como alento, canta a individualidade expressa num discurso que
elogia as vantagens da vertigem causada pelas diferenças
idealizadas.
Ao tentar estabelecer, no atual projeto imperialista
de uniformização ideológica, a identidade individual
como determinante na relação social, os pós-modernistas,
contrariamente às suas pretensões individualistas,
definem a uniformidade como padrão para suas obras, por não
conseguirem retirar, da base dos relacionamentos, as semelhanças
de interesses, necessidades, ideologias e formas que os sustentam.
É do interior da relação social que emerge
o interesse pela individualidade, real ou idealizada, que não
é exclusivo de um indivíduo, mas uma pretensão
de classe, logo, as formas e os conteúdos da produção
individual resultam em formas e conteúdos coletivos.
Por esses motivos, as tão diferentes obras
pós-modernas são tão parecidas umas com as
outras.
Não falo de ilustração de livros,
falo de objetos apresentados como obras de arte, trabalhados com
as formas das representações artísticas para
ilustrar os discursos internos e públicos das idéias
e opiniões, transformando a palavra em objeto plástico.
Trata-se de pseudo-arte feita para concluir ou complementar um discurso:
por exemplo, a imagem como solução para um recalque
ou como representação de uma “idéia genial”
(entenda-se livres associações genéricas e
abstratas demais, baseadas numa impressão pessoal sobre os
objetos que considera universais).
O pós-modernismo, ao adotar como uma de suas
obras típicas a ilustração, consegue dar uma
história para o que não tem história, isto
é, a imagem é baseada no discurso, ganhando, com este
procedimento, uma história torta: a principal base da obra
é o discurso que cuida de tudo; o artista pode ficar tranqüilo,
não precisa pesquisar as formas e seus conteúdos porque
suas preocupações acabaram, uma vez que o discurso
(anterior, interno e posterior à obra) já solucionou
todos os problemas. A obra tem que ser apenas uma imagem que passe
corretamente os conteúdos desse discurso ou de parte dele.
A ilustração pós-moderna é
colocada em público como solução de um problema6,
apresentação de formas e ou símbolos padronizados,
imagem física de ditado popular, exposição
de uma opinião ou ironia sobre algo que possa chamar a atenção,
com composições baseadas na continuidade linear de
uma forma na outra.
É uma forma criada no verbo e ilustra-o fielmente.
Tudo está na idéia, sem necessidade de execução
da obra, que, se produzida, terá a melhor forma naquela que
mais direta e mecanicamente é entendida como “expressão”
fiel do discurso que a originou, num ato reduzidamente cerebralista,
cuja obra, que deveria ser artística, é uma retomada
reformista do princípio clássico que afirma ser bela
a obra que melhor representa a beleza ideal que “corrige”
as imperfeições (entenda-se contradições)
do mundo real. Assim, a ilustração pós-moderna
é a melhor representação atual do idealismo
na obra.
Por ser uma representação imediata
e certeira do verbo, só vive com ele. A primeira referência
para entendermos a ilustração pós-moderna não
é história da produção artística,
como deveria ser, é o discurso sobre uma questão pessoal
carregado da pretensão de ser uma imagem universal, por meio
da palavra e da exposição ostensiva desses objetos:
discursos e imagens especulares entre si.
Trata-se da imagem que aspira ser texto e do texto
que aspira ser imagem, numa concretização das piadinhas
lingüísticas pós-modernas para tentar realizar
a “inexorável textualização da vida”,
um ramo da estetização da vida, que, além de
impor a releitura -uma contrafação-, faz o discurso
que sustenta a ilustração. A imagem é a releitura
do texto-discurso-mundo, porque se considera que o mundo está
pronto, não restando nada a fazer a não ser reler;
é um projeto anticriativo e anti-histórico, porque
não se reconhece como parte de um processo, mas sim como
a conclusão da vida humana.
Estetização e textualização
da vida são ações e concepções
que formam o campo perfeito para a ilustração, com
uma “flexibilização” (entenda-se perda)
das formas e dos conteúdos significativos dos objetos envolvidos
nessa operação de “re-significação”,
que atua como uma das bases do hibridismo pós-moderno.
O objeto tem que ser o signo que carrega os significados
essenciais do que expõe, para que o “leitor”
(e aí sim, seja leitor pretendendo ler por meio de códigos
e caminhos pré-definidos e não ver a obra com outros
olhos além dos que são pré-determinados), encontre
um texto na ilustração, uma vez que os elementos intrínsecos
e extrínsecos à obra se fundem num discurso reconhecível.
A ilustração fundamenta-se na ordem
linear, porque precisa comunicar um conteúdo controlando
todos os desvios possíveis, exceto os praticados pelos pós-modernistas,
e, ao mesmo tempo, ocultar a base teórica que a formaliza7,
por meio de padronizações clássicas: o “artista”
se impõe regras apriorísticas, reapresentando significados
já conhecidos na aparência; não cria formas
que estabeleçam novos significados, porque toda a “obra”
precisa ser entendida conforme os significados a priori que lhe
foram impostos;
Suas formas são antimodernas, porque o moderno,
de dentro da pesquisa formal, estabelece novas formas para a arte.
Simula a inexistência do modernismo, histórico por
excelência, apropriando-se de partes das aparências
das vanguardas e dos movimentos radicais, retirando-lhes a radicalidade
e a historicidade, porque abandona a crítica, a política
e a base econômica da produção, reduzindo a
obra aos fenômenos estéticos e artísticos, submetidos
às outras esferas da vida.
Os ilustradores visam acabar com a arte ou, pelo
menos, com a arte séria e crítica, porque, em vez
de artistas, são reprodutores, repetindo suas soluções
formais, a serviço do verbo incompleto ou superficial das
concepções pós-modernas a serem adotadas pelos
dominados.
A linguagem disciplina a produção
artística, que abre mão da criação,
transferindo-a para o discurso formador da imagem. Como o discurso
é linear, embora não muito preciso, e para garantir
um mínimo de inteligibilidade, a forma plástica o
acompanha. A pesquisa artística -realizada sobre os materiais,
instrumentos, gestos, sensações e sentimentos- é
deixada de lado em favor de uma forma repetitiva que garanta uma
apreensão fiel do objeto, conforme os códigos convencionais
de comunicação; o que deveria ser arte e só
conseguiu ser ilustração praticamente se iguala à
propaganda; esta vende uma mercadoria qualquer, aquela publica uma
opinião.
Mas este discurso não é criativo e
muito menos crítico, porque reproduz os chavões de
fácil decodificação pelo senso comum; a ilustração
vem de modos de saber acríticos e apresenta formas igualmente
ordinárias, sem profundidade, apenas reproduções
imagéticas da palavra-chave, do ditado popular, do banal,
da superfície. Imagina que o texto conduz o mundo. Erro fatal,
a começar pelo texto simplista que a engendra.
Em contrapartida, o discurso caiu na vacuidade -tudo
acontece porque os agentes sociais são indefinidos. A imprecisão
comunicativa é apresentada como liberdade discursiva e prontamente
elogiada, numa reprodução empalidecida dos poemas
dadaístas. Esta mistura entre imagem e discurso acabou por
danificar os dois, fingindo uma integração sensível,
de fato inexistente, pois se confundem as formas, a natureza, os
procedimentos e as relações entre eles.
A ilustração pós-moderna é
uma solução paliativa para um problema maior e complexo,
muito mais profundo do que imagina o(a) ilustrador(a). Nela existe
a pretensão de definir o “artista” como ser superior
que trabalha com os destinos da humanidade, pois trata de coisas
amplas demais, aplicáveis a quase todo habitante da terra,
num procedimento ideal de absoluta abstração sobre
o que é o homem, visto como um ser genérico, sem qualquer
identidade individual, descolado das relações sociais
e sem lugar particular.
Não é arte de tradição
clássica, nem moderna, é a “arte” da social-democracia,
a terceira via estética e plástica dos setores dominados
da classe dominante, que procuram manter-se sob alguma forma de
poder constituído no Estado ou a ele aliado, apresentando
a ilustração como objeto neutro e inofensivo, voltado
para servir a todos. Os agentes do pós-modernismo vivem na
abastança (embora a maioria deles seja de classe média
e dominados pela classe burguesa dominante) desse estilo oficial
que monopoliza espaços públicos e privados, patrocínios
e divulgação, colocando nos postos de trabalho e nos
cargos de gerenciamento, seleção e promoção
das obras de arte apenas seus correligionários políticos
(e vivem dizendo que política não tem nada a ver com
arte), sem considerar a competência e a capacidade profissional
indispensáveis para o exercício de tais funções;
além disto, estendem a banalização que fazem
do e no mundo, por meio da arte-educação, para as
crianças e os adolescentes que são estimulados a fazerem
as anticriativas e enfadonhas “releituras”, opostas
até mesmo às antigas cópias dos mestres feitas
pelos aprendizes nas aulas acadêmicas de arte.
Triste fim: discurso oco, por ser uma opinião
senso comum, e imagem travada, por ser uniforme. O(a) ilustrador(a)
pós-moderno(a), ao tentar transformar sua impressão
sobre o mundo numa obra apresentada como panacéia, acaba
por expor seu profundo desalento.
Notas:
1
- Texto apresentado no dia 29.03.2004.
2
- Professor de História da Arte no Departamento de Teoria
da Arte e Música/Car/Ufes.
3
- Sobre a integração entre pós-modernismo e
neoliberalismo, ver, entre outros, Terry Eagleton, “Capitalismo,
modernismo e pós-modernismo”. Crítica Marxista.
São Paulo: Brasiliense, n. 2, 1995.
4
- Sobre naturalismo ver Harold Osborne. Estética e teoria
da arte: uma introdução histórica. 4. ed. São
Paulo: Cultrix, 1983 e Ernst Fischer. A necessidade da arte. Rio
de Janeiro: Zahar, 19.
5
- Uma análise rica sobre estilos dominantes e críticos
está na História da arte e movimentos sociais de Nicos
Hadjinicolaou.
6
- É um falso problema, uma contrafação: há
um desvio na definição do problema que é tratado
como linguagem e não como arte plástica e este desvio
causa uma distorção seriíssima que é
generalizar a linguagem como a expressão e a representação
universais, transformando todas as modalidades artísticas
em manifestações da linguagem. É importante
deixar claro que esse reducionismo é fundamental para a perda
das particularidades e das inter-relações entre economia,
política, moral e cultura, que, estetizadas por meio da linguagem,
passam a ser objetos de especulações livres das relações
sociais de classe, pertencendo a uma sociedade universal denominada
texto.
7
- O pós-modernismo está confortavelmente assentado
em três tipos de filosofia: o neopositivismo com sua constatação
única da realidade existente devidamente corrigida e ordenada;
o neoliberalismo com a propagação da diferença
individual, estabelecendo a crença de que cada um faz e interpreta
diferentemente a obra de arte; e o neo-estruturalismo com seu relativismo
típico e sua imprescindível textualização
da vida que transformam a obra pós-moderna e a obra de arte
em linguagem relativa ao(à) receptor(a), não sendo
maculada pela economia, pela política e pela moral. Sobre
a pureza no pós-modernismo ver o problema do pluralismo no
livro Recodificação, de Hal Foster.
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