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As práticas performativas e as artes performativas como novo paradigma da antropologia do teatro e da etnocenologia1
Cesar Huapaya2

 


Foto Roger Savaris

 

O mundo das artes não parece ter perdido o rumo da história como afirmava Artur Danto em 70. Quais são os paradigmas das artes performativas e do teatro contemporâneo? Segundo o performer de teatro, Jerzy Grotowski (1933-1999), algumas teorias estéticas e científicas tendem a tornar-se caducas. No teatro a etnocenologia rompe com o conceito de teatro, criando o de artes performativas e práticas performativas. A representação será substituída pela presentação.O filosofo e historiador de ciências Thomas S. Kuhn (1922-1996), professor em Harvard, escreveu em 1962, "A estrutura das revoluções cientificas", em sua tese ela mostra que a disciplina científica não evolui dentro uma perspectiva evolucionista e continua. Para ele, a ciência evolui com o surgimento e mudanças de paradigmas. Um paradigma é partilhado por uma comunidade, quando um modelo entra em crise, um novo paradigma se organiza, no qual a comunidade intelectual irá transmitir a outras gerações. Kuhn demonstra em sua tese, que um paradigma se torna obsoleto em pouco tempo. Nas artes essa evolução é bem visível, especificamente no teatro dos anos 80 e 90.

Os estudos antropológicos no teatro é um novo paradigma que surge nos anos 80 e 90, como oposição ao funcionalismo da semiologia. A antropologia do teatro e a etnocenologia têm como objetivo realizar estudos interdisciplinares das práticas performativas (carnaval, candomblé, congo) e das artes performativas (teatro, dança, arte corporal, performance e a arte ação) de diversos grupos e comunidades. Tendo como linha de pesquisa o corpo e a relação cinestésica do performer espectador, artista e o indivíduo. A antropologia do teatro e a etnocenologia estudam como o homem pensa o corpo em uma situação performativa e cotidiana, combatendo toda forma de etnocentrismo. Fugindo do conceito europeu do termo "teatro", a etnocenologia vai se associar a diversas disciplinas: antropologia, ciências humanas, neurociência, lingüística, estética, estudos coreográficos, teatrais e as etnociências. Analisando os processos criativos do performer do ponto de vista do espectador e do performer. A questão pluri-disciplinar e a condição básica de realização da etnocenologia e da antropologia do teatro.

As artes performativas, como as práticas performativas, possuem a capacidade de interferência em todas as camadas da sociedade e de seus tecidos performativos. A ação, o movimento faz parte desse triângulo nervoso que o performer cria no tempo e no espaço. O ato de mexer com o corpo, no tempo e no espaço, remete o performer a uma ação radical dentro do sistema social. O performer em ação é um demiurgo, um profeta e um condutor de suas ações no cotidiano. Mesmo que essas ações sejam delimitadas pelos papéis sociais da sociedade, com suas "constelações sociais".

A performance é uma cultura orgânica no espaço, que só pode ser aprendida no espaço. A vida como a performance é a espacialização do pensamento, idéias, corpos, desejos. Antonin Artaud no texto sobre Les Tarahumaras, afirmava que o teatro como a performance "é uma arte do espaço e é pesando sobre os quatros pontos do espaço que ele arrisca-se a toca a vida. É nesse espaço habitado pelo teatro que as coisas encontram suas figuras, e, sob as figuras, o rumor da vida"3. A vida como o teatro e a performance, precisam do espaço para concretiza a afirmação do homem com seus habitus e pensamentos. O corpo é o veículo dessa concretização, que vai do corpo vazio para as formas em presentações performativas, em civilizações e em pensamentos. A encenação de uma peça de teatro ou de um filme não é somente uma atividade artística. Ela é um processo geral atendendo todos os campos antropológicos, que constrói as operações sobre os corpos sociais e orgânicos da sociedade. O performativo como a encenação são meios concretos que a sociedade se apropria para expressar o seus corpos no cotidiano e no social.

O performer foge a regra da manipulação do estado, criando um mundo próprio e uma personalidade própria. Ao presentar sua performance em dança, instalação ou em rituais de Candomblé e carnaval, o performer cria um tensão energética com seu corpo. Esse corpo pode ser visto dentro de um conceito antropológico propostos por Barba e Grotowski nos manifestos de antropologia teatral. Grotowski criou o neologismo de "performer" e depois abandonou por atuante. Segundo Jean Bazin4 , o homem deve ser estudado pelo ato como ele faz suas ações, e não como eles são. Como ele faz sua comida, sua dança, suas cerimônias, seus processos criativos. Não devemos julgar ou analisar um determinado grupo ou indivíduo pelo que eles são, mas sim como eles agem ou fazem sua ações no tempo e no espaço social, individual e privado.

A etnocenologia e a antropologia do teatro participam da construção progressiva de uma cenologia geral, que não se limita às análises dos espetáculos, mas trabalhando as questões: "porque e como o homem pensa com seu corpo? Em qual e quais condições um certo tipo de ação participa de uma estética?"

 


Foto Simone Guimarães

 

Body art, ritual e artes performativas
Foi durante os anos 60 e 70 que a utilização do corpo como suporte tornou-se quase obrigatório em todas as instalações, performance e produções artísticas. Em 1909 em Munique, o dramaturgo Frank Wedekind, urina e se masturba em cena. Wedekind era um performer subversivo e ativista, que falava do sexo e das descoberta dos prazeres dos adolescentes em "O despertar da primavera". Wedekind é um dos precursores da Body Art e o primeira a fazer uso da masturbação em cena. Em 1914, Maiakovski, pintava seu corpo para ler seus poemas. Marcel Duchamp vai usar o corpo como meio de discurso visual. Grotowski vai inaugurar no teatro uma das experiências mais radicais dos anos 60, uma prática de teatro psicofísico do ator santo ritualizado. A mesma experiência ritualística encontramos no Theatre de orgias-mistérios de Hermann Nitsch em Viena. Seu trabalha tinha uma dimensão psicopatológica de uma sociedade ritualizada. Seguindo as tendências dos happenings ou das criações coletivas e das ações políticas, o Living theatre nos Estados Unidos, inspirado em Artaud cria um teatro radical de protesto, tendo o corpo como suporte político em seus espetáculos. Em 1966 figuras da Body Art como Vito Acconci, Dennis Oppenhein, Gina Pane colocam o corpo como linguagem sociológica, critica e escatológica.

Apesar de trabalhar com o corpo, a Body Art, será uma arte da linguagem do corpo como gramática e semiótica. A estética dos anos 60,70 eram influenciadas pelo estruturalismo e por Nietzsche e Artaud que foram os precursores de uma teoria corporal, que irá contaminar todo geração dos anos 60 e 70. Os trabalhos de Grotowski e de Eugenio Barba vão fugir da semiótica em troca de uma visão hermenêutica no teatro. O corpo psicofísico de Grotowski e a pré-expressividade de Eugenio Barba será uma tentativa de se livrar das amarras do funcionalismo do teatro europeu.

A arte corporal nos anos 60 e 70 pode ser dividida em várias vertentes de artistas: o ritual e o sangue na obra de Hermann Nitsch e Michel Journiac; os cortes de Gina Pane; as experiências físicas de resistência à dor de Dennis Oppenheim, Vito Acconci, Peter Stembera; o performer ritual e psicofísico de Grotowski; os parangolés de Hélio Oiticica e seu corpo coletivo como ready-made cultural; o chamanismo na terapia de Lygia Clark com seu corpo sem órgãos como Artaud. O fascínio pelo ritual e pelo transe, toma conta das maiorias das produções. O Living Theatre, faz uso do transe em suas representações, criando um verdadeiro teatro da crueldade. O artista fugia da lógica racional no seu processo criativo, o mito do dionisíaca era uma forma de liberação do artista em seu estado mais puro e "primitivo".

Segundo Richard Schechner, o ritual será o futuro do teatro. Schechner vai criar junto com o antropólogo americano Victor Turner (1920-1985) a performance studies, tendo como origem seus rituais de happenings e performance. Tuner e Schechner faz a junção de arte e da antropologia, onde a ação ritualizada do drama social e drama estético será o tema de estudos e espetáculos. Tuner em sua teoria diz que a performance não se limita ao teatro, dança, música mas também a toda sociedade. A utilização do corpo como suporte na Body Art levaram a arte a romper com suas fronteiras, penetrando no campo do antropológico. O corpo foi levado a sua exaltação máxima sendo crucificado, cortado, mutilado e torturado. O corpo da Body Art foi uma forma radical e um a grande descoberta dos artista ao perceber o corpo como elemento de pesquisa, e como corpo vivo que pensa, chora, evacua e morre. A arte foi levado aos seu limites como protesto escatológico e político. A Body Art é o inicio de um estudo performativo e prático do corpo como ação no tempo e no espaço. Ela foi a primeira escritura antropológica corporal das artes performativas interferindo nas práticas performativas da sociedade.

O grande perigo da análise antropológica no teatro e nas artes performativas, são as tendências culturalista, que tende a reduzir o estudo da antropologia do teatro e da etnocenologia em estudos das práticas performativas das culturas. A antropologia do teatro tem como objetivo principal de combater a perspectiva evolucionista, que considera os povos e a civilizações como seres cristalizados. A antropologia do teatro e a etnocenologia têm como suporte de estudos as técnicas de corpo, as relações kinestésicas do performer. Ele propõe estudar como o homem realizando uma ação ou seqüências de ações. A antropologia do teatro analítica não quer descrever um povo, mas a ação individual e performativa de uma pessoa ou determinado grupo social: suas emoções, seu corpo psicofísico, seu bios, do ponto de vista interior e exterior. A antropologia do teatro considera o performer-espectador-público como criador constante da realidade e da obra. Todas relações entre os performers na sociedade e performers, são relações kinestésicas e psicofísicas , que se modificar de acordo com a perspectiva de quem vive e de quem descreve e sente a ação do homem no tempo e no espaço.

Podemos afirmar como François Laplantine, que a especificidade da antropologia "não é ligada a natureza das sociedades estudadas (sociedades tradicionais que são colocadas como oposição as sociedades modernas) nem aos objetos particulares (religião, economia, política e cidades....) mas a um projeto: O estudo do homem total, quer dizer, dentro de toda sua plenitude e toda sociedade, sobre todos os estados e épocas"5. A antropologia contemporânea não procura conhecer o homem na sua relação com a cultura, mas como o homem age em suas ações interiores e exteriores, individual, social, existencial e corporal.

 

Antropologia do teatro
Os estudos antropológicos do teatro, também possuem várias escolas de descrições etnográficas, mostrando como o homem pensa o corpo e o espírito. Na antropologia teatral, Eugenio Barba, utiliza a hermenêutica como perspectiva de análise sobre o bios e o pré-expressivo do performer. A antropologia teatral estuda o comportamento biológico e cultural do homem em uma situação de representação, mostrando como o homem utiliza sua presença física e mental. A antropologia teatral de Barba, se ocupa da dimensão fisiológica ( corpo, anatomia, respiração, energia, músculos e pré-expressividade) e cultural do performer. Grotowski, elaborou um estudo antropológico sobre o homem (performer) em ação. A antropologia performativa de Victor Turner e Richar Schechner, estudou o teatro como rito de transgressão e seu estágio liminar, ou seja, como rito de passagem. Dentro de uma perspectiva simbólica.

A etnocenologia de Jean-Marie Pradier, vai estudar as práticas performativas de diversos grupos e comunidades do mundo, tendo como objetivo principal combater o etnocentrismo. Segundo Pradier, ela participa da construção progressiva de uma cenologia geral, que não se limita as análises dos espetáculos, mas trabalhando as questões: "Porque e como o homem pensa com seu corpo? Em qual e quais condições um certo tipo de ação participa de uma estética? Fugindo do conceito europeu do termo "teatro", a etnocenologia vai se associar a diversas disciplinas: ciências humanas, neurociência, lingüística, estética, estudos coreográficos, teatrais e as etnociências. Analisando os processos criativos do performer do ponto de vista do espectador e do performer. A questão pluri-disciplinar e a condição básica de realização da etnocenologia, que estuda como o homem pensa e age com o corpo em uma situação performativas6.

Dividida e várias escolas, a etnocenologia tem o seu representante maior na França com Jean-Marie Pradier, que faz uma desconstrução dos termos, cultura, tradição identidade e teatro. Ligado à corrente contemporânea de antropologia, Pradier cita Jean Bazin e Marc Augé, antropólogos analíticos. A Segunda escola de Chérif Khaznadar da Maison des cultures du monde de Paris, estuda as práticas performativas do ponto de vista culturalista, buscando resgatar e manter o que existe de tradição na cultura. Ela estuda o teatro e as praticas performativas como metáfora da cultura, ou seja, um objeto que deve ser estudado e preservado.

A etnocenologia de Pradier, rompe com o discurso culturalista e vai ao encontro de uma hermenêutica da ação. Segundo ele "a etnocenologia é uma hermenêutica da ação. Ela prefere descrever rigorosamente o que faz os indivíduos performers", citando Jean Bazin. A etnocenologia reconhece o estatuto especifico das práticas performativas e das artes performativas como estudo antropológico. Várias pesquisas são realizadas sobre a gravidade movimento, as técnicas de corpo, os processos criativos do performer, o espectador, a energética e o dispositivo corporal e sua relação com a neurológico e com o sistema cognitivo.

 

Proposta de trabalha performativo
Deixando de lado a estrutura tradicional de análise de espetáculo em minha criação artística (como encenador-performer), procurei nos anos 80, uma estrutura mais próxima da análise antropológica e corporal das práticas e das artes performativas. Como metodologia de análise e de descrição corporal, eu adotei os modelos do Candomblé e do grupo de Teatro Experimental Capixaba do Espírito Santo (Brasil), que foram adaptados especialmente para os meus estudos. A discussão corporal veio em primeiro lugar, juntamente com a relação entre o social e individual. Eu fiz uma revisão dos conceitos filosóficos sobre as maneira de pensar o corpo. Adotando o conceito de "corpo psicofísico" e a kinestésica de Wittgenstein, que deixa de lado a dicotomia corpo/espírito e corpo/celebro. O termo kinestésica vem do Grego Kinési, sensações do movimento.

Adotei também, os estudos das técnicas de corpo e de descrição corporal do performer e da população. Estudando como eles fazem e como eles constrói sua história (Jean Bazin). Os processos criativos e as reações cinestésicas do performer e do espectador são analisadas, como também as partições corporais, orgânicas, rítmicas e as impulsões orgânicas de Grotowski. Mas minhas pesquisas antropológicas e criações performativas venho trabalhando as seguintes estruturas:

1. A fabricação do social, do imaginário, do político e do individual nas práticas performativas e nas artes performativas (Eric Hobsbawn et Gérard Lenclud);

1.2. As práticas performativas e a experiência estética como interferência na existência quotidiana do performer;

1.3 As descrições dos movimentos energéticos e estéticos do performer nas artes performativas e nas práticas performativas (Os processos criativos, do performer, as práticas de espetáculos, o espaço e o olhar do espectador, as partituras orgânicas corporais e rítmicas);

1.4- O corpo como unidade psicofísicas (Wittgenstein);

1.5- As técnicas de corpo, as descrições e concepções corporais dos performers e das populações ou civilizações e os conceitos filosóficos das ações do homem no mundo (Marcel Mauss);

1.6- Dramaturgia corporal, escrita e oral do performer (o corpo biológico, energético e criativo);

1.7- O som-corpo , o ritmo, a tonalidade e a cor do corpo;

1.8- As sensações kinestésicas e visuais do performer e do performer-espectador e os dois olhares;

1.9- As impulsões orgânicas (Grotowski) nas ações do performer, os pontos riscados (do Candomblé e da umbanda) e os atabaques (Cesar Huapaya);

1.10- Os dispositivos pulsionais e energéticos (Lyotard) como análise das ações e os Tons corporais: dramaturgia-sonora-corporal (Cesar Huapaya);
Quando o performer dança, ele descobre sua partições (tons) corporais, que são suas características próprias e de seu orixá. Essa primeira fase e chamada de bori no Candomblé. O bori é uma cerimônia que reforça a ligação entre orixá e o iniciado. O iaô raspa sua cabeça abrindo suas emoções. O bori é a abertura do ponto energético situado ao centro da cabeça que vai até o anus;

1.11- O axé (force vital), essa força é presente na natureza e nos Orixás. Através da dança e dos atabaques os performers descobrem seus axés. O axé é a energia que pulsa no corpo e nas substâncias materiais da natureza e da expressão do homem. Essa noção de força vital encontramos em várias civilizações;

1.12- Os pontos riscados e o triângulo corporal plástico do performer: os ritmos, gestos e gingados.

O diálogo entre a antropologia e o teatro, nos faz rever todo a perspectiva histórica adotadas nos estudos teatrais e coreográficos das artes cênicas. Um novo paradigma é instalado nesse campo vasto e rico que é as artes performativas e as praticas performativas. Segundo o antropólogo de teatro, Piergiorgio Giacchè (Itália)7: "a novidade que caracteriza a geografia atual do teatro é o nascimento de uma antropologia implícita, precisa e bastante consciente. Que invade, sem duvida o espaço e o título de uma ciência do teatro, elaborada por homens que fazem o teatro e a dança. Dentro desse novo contexto, a antropologia do teatro como a antropologia não é uma disciplina fixa ao determinismo teórico, temos várias correntes de pensamento. A perspectiva analítica da antropologia contemporânea é uma grande aliada ao novos estudos da etnocenologia e da antropologia do teatro, que vão estudar dentro de uma novo perspectiva as artes performativa e as práticas performativas cotidianas e extra cotidianas.

 

Notas

1 - Texto apresentado em 30.03.2004.

2 - Performer encenador, etnocenólogo e professor de artes cênicas no Departamento de Teoria da Arte e Música/Car/Ufes, Doutor em estética e etnocenologia pela Universidade Paris 8, Vincennes Saint Denis, França.

3 - Texto publicado em Les Tarahumaras, ed.L'Arbaléte, Marc Barbezat, 1936. p. 196-208. Conferência pronunciada em 1936 na Universidade do México.

4 - Jean Bazin, "Questions de sens", Le description, Enquete/Numero six, Marseille, Parenthèses, 1998. p. 13-34.

5 - François Laplantine, La description ethnographique, Nathan, Paris, 1996. p. 7.

6 - Jean-Marie Pradier, L'ethnoscénologie vers une scénologie générale, L'Université des Arts, Klincksieck, 2001. p. 153.

7 - Piergiorgio Giacchè, Aux confins du théâtre, sur la relation entre théâtre et anthropologie, diogène, n 186, avril-juin 1999. p. 110-123.