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Perspectivas
fenomenológicas do construtivismo no ensino e aprendizagem
da música: teorias alternativas para uma fundamentação
filosófica na pesquisa e exploração do valor
epistemológico da música na educação
musical através da apreciação, interpretação
e criação musical1
Sérgio Luis de Almeida Álvares2
Questões epistemológicas relevantes à constituição
do saber e como a humanidade obtém e transmite o conhecimento
são questões centrais para a formulação
de uma filosofia para uma pesquisa acadêmica em qualquer área
educacional, na medida em que a pesquisa acadêmica procura
informar à prática educacional como acumular e transmitir
o conhecimento. Estas questões afetam não somente
a definição do contexto educacional como objeto de
investigação, mas principalmente a definição
da pesquisa como um caminho sistemático na busca do saber.
E é nesse último sentido em que as discussões
filosóficas sobre metas e objetivos da pesquisa em educação
musical são majoritariamente enraizadas, com as escolas de
pensamento histórico preocupadas com o conhecimento proposicional,
definindo categorias de informação sobre a música
e a educação musical que podem ser classificadas como
áreas de conhecimento e procedimentos através do qual
o saber possa ser sistematicamente coletado e validado. (Stubley,
1992)
Três vertentes da escola do pensamento proposicional destacam-se
historicamente com contribuições relevantes para uma
fundamentação filosófica na pesquisa acadêmica.
O legado da escola do Racionalismo (Crocker, 1964; Drake, 1970;
Ferguson, 1959; Forte, 1980; Gottfried, 1988; Lewen, 1987; McClain,
1976; Rahn, 1980; Tatarkiewicz, 1970; Walker, 1978), por exemplo,
propõe um modelo de pesquisa para uma investigação
das formas musicais fundamentado em abstrações teóricas,
onde a veracidade e a validade das proposições vão
lapidar os fundamentos formais e idealistas moldados sempre através
das leis da lógica e do raciocínio matemático.
O legado da escola do Empirismo (Cooksey, 1982; Gordon, 1987; Helmholtz,
1954; Kuhn, 1987; Mursell, 1934, 1937; Seashore, 1938), por outro
lado, propõe direções e procedimentos para
uma avaliação da veracidade e validade das proposições
pertinentes à música e aos diversos comportamentos
musicais como fenômenos objetivos e científicos. O
legado da escola do Pragmatismo (Davidson, 1988; Dewey, 1933; Gardner,
1983; Geertz, 1973; Gustafson, 1987; Hargreaves, 1986; Merriam,
1984; Moog, 1976; Reimer, 1989; Scheffler, 1988; Swanwick, 2002),
originalmente, propõe princípios e procedimentos para
desenvolver uma compreensão de um contexto específico,
onde as várias proposições são empiricamente
formuladas num esforço direcionado a facilitar a aplicação
dos resultados da pesquisa acadêmica através de hipóteses
com o objetivo de determinar de que maneira o ensino e a aprendizagem
numa situação em particular possam ser maximizados.
Apesar de seu valor histórico, tais pensamentos, contribuições,
princípios e procedimentos tornam-se limitados como fundamentos
abrangentes para a pesquisa acadêmica na educação
musical contemporânea, na medida em que se fundamentam em
convicções nas quais o saber sobre música e
educação musical possa ser adquirido sistematicamente,
ao invés de fundamentarem-se numa visão da música
como um modo de saber, tendo assim um valor educacional distinto,
não-proposicional. Como profissionais, os educadores musicais
devem levantar questões sobre a autenticidade, a veracidade
e a realidade do ensino e da aprendizagem musical antes de determinarem
como, quando e o quê deve ser ensinado e aprendido no campo
da educação musical. Tais indagações
nascem, em grande parte, pelo fato de que as teorias epistemológicas
até o início do século XX fundamentaram-se
majoritariamente no conceito do saber proposicional, ou seja, “saber
o quê?” – uma forma de saber que não empossa
a magnitude do amplo significado universalmente associado com a
música.
Avanços nas teorias epistemológicas no decorrer
do século passado (Berlyne, 1966; Carlsen, 1970-71; Cuddy,
1977; Durkin, 1982; Eisner, 1979; Hair, 1987; Heller, 1976; Kant,
1951; Meyer, 1956, 1967; Nettl, 1983; Perkins, 1977; Scruton, 1983;
Serafine, 1980, 1988; Wittgenstein, 1966) fundamentaram-se no conceito
do saber como um construtivismo da mente humana, tornando-se assim
mais útil para uma abordagem da diversidade do pensamento
humano, partindo de indagações sobre veracidade e
validade rumo a inquisições sobre compreensão,
significado e representatividade. O trabalho de teoristas simbólicos
como Cassirer (1953, 1956) e Langer (1942, 1953, 1967-85), que expandiram
o conceito do saber com a inclusão do saber não-proposicional,
tornou-se possível graças aos âmbitos não-científicos
da vivência humana, tais como a arte, o misticismo e a religião.
A interpretação da música como semiologia ou
semiótica, entretanto, tem também mostrado ser de
valor limitado no que diz respeito a uma fundamentação
epistemológica abrangente para a pesquisa em educação
musical contemporânea, uma vez que nenhuma única interpretação
da música como símbolo pode acomodar a tantas diferentes
maneiras nas quais a música é vivenciada como expressão
humana, ou ainda o valor da música cuja variedade das tradições
musicais vinculam-se às diversas práticas musicais
interpretativas.
As interpretações fenomenológicas do construtivismo
e a distinção que Ryle (1949) faz entre o saber proposicional
e o saber comportamental oferecerem-nos um ponto de partida alternativo.
A descrição fenomenológica do processo através
do qual a humanidade passou a valorizar seus indivíduos –
um ato intencional de dimensões antropológicas –
pode nos ajudar a desvendar a maneira como a experiência musical
é lapidada. A música, como um modo de saber, não
é definida por nenhum gênero em particular, tradição
histórica ou qualquer tipo de experiência musical específica,
mas sim pelas múltiplas maneiras nas quais o evento musical
possa ser modelado ou construído em qualquer dado momento
do percurso histórico. O conceito de Ryle do saber comportamental
ajuda na definição de uma nova orientação
à epistemologia musical, na qual o saber não está
simplesmente restrito a um critério ou a outros símbolos,
mas manifesta-se essencialmente através do fazer.
O relógio em bom funcionamento nos dá a hora
certa, e a foca de circo bem treinada realiza seus truques impecavelmente;
porém não podemos dizer que sejam “inteligentes”.
…Ser inteligente não é meramente satisfazer
um critério, mas usar um critério para direcionar
suas ações e não meramente ser devidamente
direcionado. A performance de uma pessoa pode ser denominada como
meticulosa ou habilidosa, se em suas ações ela encontra-se
preparada para detectar e corrigir seus lapsos, repetir e aprimorar
seus acertos, beneficiar-se de exemplos alheios, e assim por diante.
Uma pessoa usa um critério criticamente, isto é, tentando
fazer a coisa certa. (Ryle, 1949,
pg. 28-29)3
O conceito de música como objeto de estudo que emerge desses
avanços epistemológicos, traz várias implicações
importantes para o desenvolvimento de uma filosofia para a pesquisa
musical acadêmica. A princípio, a pesquisa em educação
musical não pode estar restrita a uma única definição
do potencial do valor expressivo da música ou a um único
estilo ou tipo de experiência musical. A pesquisa acadêmica
deve ser direcionada dentro de um panorama filosófico que
reflita as várias camadas diferentes do significado do potencial
da música quando a música é vivenciada como
objeto, e daqueles significados possíveis somente através
da prática interpretativa e da criação musical.
Isto requer atenção na formulação de
questões de pesquisa, no desenvolvimento de metodologias
e na interpretação de resultados nos seguintes tópicos:
(1) a questão do gênero musical como um construtivismo
social e histórico; (2) a individualidade do saber que cada
indivíduo traz para as experiências musicais; e (3)
as maneiras nas quais as dimensões individuais, sociais e
históricas da experiência musical interagem nos diferentes
contextos e situações. Tal panorama precisa reconhecer
as maneiras nas quais a experiência musical do ouvinte, intérprete
e compositor conectam-se, e os diferentes tipos de saber construtivistas
a partir do ser e da cultura que cada um possibilita. Tal panorama
deve ainda acomodar mudança e aprimoramento, reconhecendo
que a pesquisa acadêmica por si mesma é um modo de
saber que ocorre num contexto sócio-histórico expandido
e em constante mutação.
Outrossim, os recentes avanços epistemológicos expandiram
o foco de pesquisa desde a informação sobre a aquisição
de técnicas musicais específicas e de conhecimento
musical até a inclusão de questões sobre o
significado da música para ouvintes, intérpretes e
compositores. Se, por um lado, a pesquisa acadêmica fundamentalmente
busca informar a prática da educação musical
através da identificação, verificação,
e acumulação de conhecimento, constituindo um conteúdo
educacional, e através da investigação de como
esse conhecimento possa ser transmitido mais eficazmente num contexto
educacional; então por outro lado, as medidas para a interpretação
e avaliação do aprimoramento estudantil e a eficácia
de uma estratégia educacional específica devem estar
conectadas ao conteúdo e ao processo da educação
musical. No caso da apreciação musical, não
é suficiente apenas saber como o indivíduo vem identificar
a pulsação como um conceito musical abstrato. Se a
música deve ser ensinada como um modo de saber, devemos então
desenvolver métodos de identificação e discernimento
de diferenças de significado atribuídas a diferentes
tipos relação musical e não-musical dentro
do contexto de uma específica obra musical. Se essas diferenças
devem ser usadas como forma de avaliação de aprimoramento
e aprendizagem para determinar a eficácia de diferentes estratégias
educacionais, então existe uma necessidade para compreender
o papel que a estrutura musical como objeto representa na experiência
do ouvinte e os tipos de saber envolvidos nas formas de avaliação
usadas para a identificação desse aprimoramento musical.
Para o intérprete e para o compositor, devemos compreender
o que constitui uma decisão musical, como decisões
musicais são determinadas, e o critério usado para
julgar o mérito artístico. Devemos compreender como
o saber sobre a música, a interpretação, a
criação e o saber sobre o ser e a cultura informam
e afetam o fazer nas decisões musicais nos vários
estágios de desenvolvimento musical, e como o potencial de
tal saber pode ser maximizado como instrumento de aprendizado. Para
fazer isso, devemos desenvolver uma compreensão de como decisões
encorpadas nas ações de intérpretes e compositores
podem ser avaliadas e usadas como indicadores de aprendizado e aprimoramento
musical.
Quando abordamos essas questões, torna-se essencial que
lembremos que o ensino e a aprendizagem musical são também
modos distintos da experiência musical (Campbell, 1989; Small,
1977, p. 206-229). Do ponto de vista da interpretação
fenomenológica do construtivismo, o ensino e a aprendizagem
não são experiências independentes da música.
O ensino e a aprendizagem da música são dois modos
distintos do saber como ouvintes, intérpretes e compositores.
A fundamentação epistemológica da pesquisa
acadêmica em educação musical precisa explorar
esses dois modos, não simplesmente como ensino e aprendizagem,
mas definitivamente como derivações de experiências
básicas na apreciação, interpretação
e criação musical, onde aí sim devem ser fundamentadas.
É aqui que as teorias epistemológicas da linguagem,
uma outra mídia simbólica, e da comunicação
tornam-se importantes. Conforme Howard (1982), a linguagem e outros
modelos para a imitação são instrumentos eficazes
na instrução musical, portanto o relacionamento entre
professor e aluno, com palavras, gestos e sons, expõe duplamente
os padrões artísticos e as maneiras para alcançá-los
no mais amplo sentido da palavra interpretação.
Num contexto de ação orientada para a aquisição
da destreza artística, a preocupação deve ser
menos com o significado particular de uma palavra que pode ser traduzida
em outras palavras, do que ao quê ela se refere (o fenômeno
em si). De fato, enquanto um fenômeno em questão –
uma qualidade especial da voz, por exemplo, a impostação
vocal – pode requerer uma descriminação precisa,
as palavras usadas para rotular ou descrever tal fenômeno
podem variar consideravelmente. O importante é estar apto
a descriminar a sonoridade uma da outra... Aprendendo como e o quê
indagar nos exemplos, o estudante avança rumo à compreensão
do quê é significativo nesses exemplos: o quê
igualar, evitar ou ignorar. (Howard, 1982,
pg. 72-73)4
Como profissionais, os educadores musicais devem desenvolver uma
compreensão do potencial dessas conexões e das diferentes
maneiras nas quais esses potenciais possam ser maximizados no ensino
e aprendizado da música nas mais diversas formas. Parafraseando
Greene (1978, pg. 161-210), parece que a incumbência de uma
filosofia de pesquisa em educação musical neste momento
seja despertar a profissão para a magnitude do âmbito
do significado potencialmente presente na vivência e experiência
musical, e ainda estimular uma reflexão sobre tal vivência
para uma introspecção, descoberta e meta-compreensão
possíveis somente com o ensino e a aprendizagem da música
através da apreciação, interpretação
e criação musical como forma completa, integrada e
abrangente de educação musical.
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- Walker, D. P. Studies in musical science in late renaissance.
Londres: The Warburg Institute. 1978
- Wittgenstein, Ludwig. Lectures and conversations on aesthetics,
psychology, and religious belief. Oxford: Blackwell. 1966
Notas
1 - Texto apresentado em 31.03.2004.
2 - Professor de música no
Departamento de Teoria da Arte e Música/Car/Ufes. Doutor
em Música pela University of Miami, Mestre em Música
pela New York University, Diplomado em Música pela Berklee
College of Music, Licenciado em Música pela Universidade
do Rio de Janeiro, Sub-Coordenador do Colegiado de Música
da Universidade Federal do Espírito Santo, Diretor Regional
Sudeste da Associação Brasileira de Educação
Musical.
3 - The well regulated clock keeps
good time and the well drilled circus seal performs its tricks flawlessly
yet we do not call them “intelligent”. …To be
intelligent is not merely to satisfy criteria, but to apply them
to regulate one’s actions and not merely to be wellregulated.
A person’s performance is described as careful or skillful,
if in his operations he is ready to detect and correct lapses, to
repeat and improve successes, to profit from the examples of others
and so forth. He applies criteria in performing critically, that
is, in trying to get thing right. (Traduzido pelo autor)
4 - In the action-oriented context
of craft skills one’s concern is less with what particular
words mean as rendered in other words than with what it is (the
phenomena) they refer to. Indeed, while the phenomenon in question
– a special quality of voice, the head voice, for instance
– may admit of precise discrimination, the words used to label
or describe it may vary considerably. The important thing is to
be able to discriminate that sound from another term… By learning
when and what to query in the examples, one advances en route to
an understanding of what is significant about them: what to emulate,
what to avoid, or ignore. (Traduzido pelo autor)
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