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Os
dilemas da arquitetura e seu objeto perdido1
Clara Luiza Miranda2
Dilema: necessidade de escolher entre saídas
contraditórias e insatisfatórias.
Questão: Dom Juan, o bruxo dos livros de Carlos Castanheda,
dizia que “todos os caminhos são bons, mas só
um tem coração”. Nesta afirmação
no fundo se busca a essência e o fundamento, a despeito de
Dom Juan estar aberto a novas experiências sensoriais e psicológicas.
Os percursos e limites de uns tempos para cá, tornaram-se
muito mais porosos e flexíveis, Suely Rolnik manifesta esta
nova situação: “Todas as saídas são
válidas se as entradas forem múltiplas”.
Regras universais por mais desejáveis que
sejam, já não são plausíveis nem possíveis
no campo da arquitetura. O acervo para escolha do arquiteto contemporâneo
pôde se constituir de toda cultura acumulada. Esta inflação
de referências do campo da arquitetura é um sintoma
do drama do autor. Dada a impossibilidade de regras universais ou
coletivas, o projeto estaria inteiramente administrado por uma sensibilidade
individual, anulada pela perda do sentido da ação
de compor, como diz Sophia Telles.
Praticamente não se pode propor regras novas. Toda produção
cultural está fadada à hipertextualidade: quer dizer,
não há obra cultural que não evoque, de alguma
forma, alguma outra. Nesse sentido, todas as obras seriam hipertextuais.
De modo que, a síndrome da criação, se houver,
não diz respeito ao referente.
Faz tempo, há um repertório muito
complexo em que constam as posições hegemônicas
da corporação ou do sistema; as do deconstrutivismo
e outras do anti-sistema; as da atração pela ficção
e pela narrativa que acolhem a hipertextualidade no campo da arquitetura;
as atitudes de retaguarda, marginalidade e resistência local,
e as da interlocução local-global, estas podem ser
tanto sistema quanto anti-sistema (Jameson, 1995). Então,
um primeiro dilema seria este excesso de teoria, mas que não
chega ser um problema.
Em arquitetura, o objeto que se pretendeu absoluto
e único, era clássico. A arquitetura clássica,
em contraste com o que a rodeia é completa e total, tem unidade.
Este objeto está perdido. Desde o modernismo, o clássico
foi questionado em sua autoridade dogmática, todo um repertório
acumulado durante milênios foi questionado.
O movimento moderno explicitava nos seus primeiros
manifestos sua diferença para o classicismo, pois este manipula
um repertório restrito e obedece a uma sintaxe rígida
e limitativa, enquanto que a arquitetura moderna (em tese) derivara
de um processo de seleções múltiplas, realizadas
dentro de um repertório amplo, com uma sintaxe flexível
e potencialmente criativa.
O moderno autêntico buscou o distanciamento
da composição clássica, sobretudo da figuratividade,
do ornamento, meios efetivos de comunicação com o
espaço cívico da cidade. Além de questionar
as ordens e também as características da modulação,
modenaturas, da repetição, da proporção
entre cheios e vazios, da simetria e os alinhamentos, que apesar
disto muitos arquitetos modernos utilizaram. Mais do que expressar
a nova civilização da técnica, da máquina
e novas necessidades sociais; reconhecidos no plano funcional, no
urbanismo, na política habitacional, o objetivo foi realmente
criar uma nova referência entre formas, conteúdo, significado,
uma renovação simbólica inerente aos processos
de criação da arte.
Porém, isso acabou não concretizando
uma arquitetura explicitamente universal, pelo contrário
a pretensão de criar novos códigos públicos
não foi aceita por parte do publico, que muitas vezes não
apreciava a nova estética. Entretanto, esta “estética”
acabou generalizando-se e banalizando-se pela disciplina de planos
diretores urbanos e da tecnologia industrial.
Outras críticas à arquitetura moderna
vêm do cunho utópico de suas “teses”, com
a efetiva distância entre a suas expectativas e a realidade
de atuação. O que deu força a escapatória
pelo viés da memória nos anos 1980-90, como veremos
a seguir.
As conseqüências mais graves vieram,
entretanto, da estrita ligação entre arte e técnica
(ciência) dentro de alguns programas da arte moderna, afinidade
com a lógica mecânica da visão, afirmação
que a expressividade era decorrência imediata da lógica
construtiva ou função, e por fim, a crença
no progresso incessante.
O Pós-Moderno, termo aqui utilizado a fim
de evidenciar que a fase do moderno esta esgotada, veio para acusar
o funcionalismo de determinista, a planta livre de recipiente amorfo
e disciplinador (autoritário). E afirmar que a tecnologia
e a industrialização comprovadamente não diminuiriam
os custos de produção de edificações,
nem o tempo gasto para construí-las; não melhorou
as condições de vida da população, nem
de trabalho do operário da construção; por
outro lado, praticamente destruíram técnicas artesanais
de construção que vinham respondendo as necessidades
construtivas, ambientais a milhares de anos dentro de suas regiões.
E finalmente, dizem que o zoneamento funcionalista, que disciplina
o uso do solo e determina maneiras de parcelar o solo e de edificar
volumes, afastamentos da rua; destruiu o tecido urbano tradicional,
rico de vivência, com suas funções misturadas
e volume construído contínuo. Afirmam que o funcionalismo
criou uma cidade de grandes parcelas homogêneas ou fragmentadas
em especialidades, ainda segregando ricos e pobres deliberadamente,
e também que o funcionalismo tem servido muito bem à
lógica da especulação e do lucro. Os arquitetos
pós-modernos jamais enfrentaram esta condição,
pelo contrário, enfrentaram-na com mais cinismo e submissão
ao capital ainda.
É fato que os modernos subestimaram a contribuição
da história, mas, superestimaram a contribuição
de personalidades como Walter Gropius, Ludwik Mies Van der Rohe,
Le Corbusier, Alvar Aalto, etc. Quase anularam o contribuo coletivo
na transformação da cidade na sua histografia, assim
como no valor da cultura dos lugares. A tentação de
moderna começar do zero acabou na noção de
viver recomeçando, além disso, tal rompimento com
a história poderia gerar um homem amnésico, e certamente,
um homem amnésico não é um homem com suas faculdades
plenas.
Esta posição não era homogênea
no movimento moderno. Basta lembrar de um filósofo moderno
importante Walter Benjamin, cujo valor dado à memória
é muito conhecido. Ele é o mesmo homem que diz “apaguem
os rastros”. (Bertold Bretch apud Benjamin), e diz também
que habitar é deixar rastros (Walter Benjamin). A revolução,
o “clash” dos modernos foi, para Benjamin, um momento
de abreviação concentrada, histórica de tempo.
Em Benjamin, não se recalca o passado para se produzir uma
apologia do presente, os dias de festa são dias de rememoração
e ter abertura para novo é anular a angústia (Matos,
1989).
No fim do século XX, iniciou-se o processo
a transformação do pensamento e da conceituação
do homem e de seu universo que não teve muito impacto na
arquitetura contemporânea. Movimentos, denominados de deconstrutivismo,
pós-estruturalismo, dentre outros, elaboraram posições
que não foram bem aceitas por causa do medo em assumir referências
alheias ao universo arquitetônico. Receio de enfrentar as
incertezas, com o mesmo procedimento de produção de
sentido que há em outras disciplinas. De modo que, a arquitetura
não questionou criticamente seus próprios fundamentos.
Permaneceu fiel a princípios próprios, que foram se
tornando insustentáveis, devido a seu inerente questionamento
interno arquiteto segundo Peter Einseman. Porém, sobretudo
a negação de enfrentar as novas situações
tornou-se problemática devido ao curso dos acontecimentos.
Esta resistência da arquitetura em assumir
o estado de desagregação cultural, provocou fortemente
no campo da arquitetura, a nostalgia pelo autêntico, verdadeiro
e pelo passado (anos 1980-90). Este dilema entre retorno ao passado
e crise dos fundamentos é mais grave e reverbera questões
advindas das ciências sociais.
Luto e melancolia
Diagnostica-se o sentimento de negatividade experimentado contemporaneamente.
A consciência deste estado de ânimo resulta em reações
antagônicas que Denise Xavier descreve:
“Uma primeira reação tenta combater
a negatividade com positividade e a segunda pensa que a única
saída para se superar a negatividade está na sua potencialização.
Estas duas reações servem para ilustrar a condição
pós-moderna, melhor dizendo, a situação de
crítica dos paradigmas modernos”.
A desagregação do sistema de valores
estável e a perda das certezas e de direção
são fatores que provocam este clima de desalento na reflexão
teórica da arquitetura.. De acordo com o texto luto e melancolia
de Freud, relativo à perda de algo ou alguém, pode-se
desenvolver reações. A melancolia permanece atrelada
à perda, pois o objeto da perda e o seu próprio ego
estão fundidos no mesmo processo. O luto se tem claramente
definido o objeto perdido, e a separação deste é
mais possível. Neste sentido, tomando emprestadas estas metáforas
coteja-se a memória aos defensores de retorno aos fundamentos
e aos historicistas e o luto aos deconstrutivistas.
A melancolia da idéia de uma estrutura permanente está
no apego aos códigos do processo histórico, que são
arrancados do seu espaço-tempo, convertendo-se em ruína,
uma estratégia de entendimento dos bens culturais, que de
acordo Walter Benjamin, permite que o sujeito se aproprie dos objetos.
O deconstrutivismo aponta a possibilidade de identificar e detonar
o centro, a fim de obter múltiplos fragmentos que deveriam
resultar em novos significantes e significados. Uma aceleração
do processo da morte do objeto, sua ruína, que se opõe
ao preenchimento do vazio desta morte com um retorno. Demonstra-se
que não há medo de se assumir referências alheias
ao universo arquitetônico, ao enfrentar as incertezas, com
o mesmo procedimento de produção de sentido de outras
disciplinas.
Topia versus atopia
Aldo Rossi, arquiteto italiano falecido, retoma alguns princípios
que haviam sido rechaçados pelo modernismo. Para ele, a raiz
da concepção arquitetônica está na correta
articulação dos elementos da memória, do lócus
e do desenho. Rossi crê que o resultado desta justa articulação
de elementos pelo objeto arquitetônico é capaz de evocar
a idéia de lócus, que é a idéia de um
lugar marcado pela presença protetora do genius loci.
A presença desta marca dota o espaço de um registro
que o diferencia das demais estruturas espaciais. Sendo assim, por
esta particular característica, uma vez na presença
deste espaço marcado, o lócus, pode-se experimentar
a memória e a reconhecibilidade (Xavier, 2001).
O conceito de "topia" para Rossi é o espaço
do reconhecimento. E como a própria construção
da palavra – reconhecer – indica um conhecimento através
da memória. Rememorar-se, no entanto, não é
somente a reincidência de experiências pessoais isoladas;
para Rossi, a memória do lugar é o resultado de sobreposições
das experiências individuais e coletivas, onde se acomodam
signos do arbítrio e da tradição. A idéia
de uma estrutura permanente (Xavier, op. cit). Este apego ao processo
histórico na constituição desta estrutura,
demonstra a identificação de um estado de luto.
O percurso de Peter Eisenman é a crítica da composição
enquanto prática pacificadora. Mas esta negação
incessante do sujeito, não renega a vontade afirmativa da
construção. Eiseman propõe o “entre”
que é semelhante ao limiar (umbral, passagem) da antropologia
que se coloca como uma região de experimentações
culturais entre antagônicos ou diferentes. O que é
uma abertura para o novo, rejeitar ressentimentos, ir em frente.
“O que é o “entre” em arquitetura?
Se arquitetura normalmente determina o lugar, então “estar
entre” significa estar entre algum e nenhum lugar. [...].
A lição do Modernismo sugere [...] que novos “topos”
devem ser encontrados explorando a inevitável atopia do presente
que está não na nostalgia estetizada do banal, mas
sim naquilo que existe entre o topos e a atopia. Para que esse processo
se concretize, o modo pelo qual o significado é expresso
deve ser examinado criticamente”. (Einseman, 1993)
Atopia é um “habitáculo à
deriva”, um percurso rumo ao “não-lugar”,
rumo à própria impossibilidade de fixação
num único sentido. O sujeito difratado em sua relação
com as coisas não tem conflito, apenas adere ou não
(Roland Barthes apud. Colombo, 1991).
A memória é conservadora e requer a gestão,
exprime a continuação, enquanto que para o novo é
preciso ação. Contudo, Hannah Arendt adverte que as
palavras ação e gestão têm uma raiz comum,
indicam conduzir e governar, levar a cabo alguma coisa. Não
contradições extremas entre memória e utopia,
entre ação e gestão.
Crítica crise-dialética-síntese
/ corrupção–esfacelamento-consumo-degeneração
Atualmente, não se encaixa perfeitamente a problemática
da crítica como desdobramento, acabamento da obra e a problemática
da crítica como crise. Esta crítica destacava a obra
do “mundo ordinário”, tanto espacial e quanto
temporal desdobrando-a em texto ou ícone. Talvez não
haja disponibilidade do tempo necessário para o processo,
de firmar uma referência no mundo em que o consumo tornou-se
o motor. O consumo não guarda e nem retém, pelo contrário
consome e é consumido, sendo transição, tem
reduzida capacidade de comunicação.
No consumo desenfreado, as coisas que “não
tem paz”. Acumulação, desperdício, usura,
a capacidade desmesurada de estocagem de dados, que são,
porém, ignorados na falta de tempo de consulta. O que significaria
este aspecto esquecimento, estocagem? Deleuze e Guattari (2002)
falam que na estocagem não há desejo de troca.
Para se constituir obras, bens que formam o mundo
e indicam sua “humanidade” é necessária
a duração. Pois, de acordo com Walter Benjamin, é
o tédio que “choca o ovo da experiência”.
A capacidade incomensurável de produção
de suportes acalenta os otimistas com a possibilidade de ampliação
da consciência e do pensamento deixar de ser uma experiência
inteiramente interna, interagindo mais com outros meios e pessoas.
Mas, por outro lado, também adverte para a cautela. Mal-entendidos,
pirataria, interpretações mal intencionadas, há
sempre a ocasião de criarem-se passados para as culturas
carentes de historicidade: as tradições inventadas.
A questão da corrupção captada
na globalização, quer dizer, o esfacelamento das certezas
e dos objetos tanto no mundo das ciências, quanto da arte
e da vida, impede o exercício da faculdade de julgar tal
como foi pensada por Imanuel Kant. Desde o século XVIII,
a arte foi uma finalidade sem fim e arquitetura uma arte funcional,
um tanto fora do campo do juízo do belo, que significava
a predominância do sentimento do homem diante do objeto estético.
Hoje na sociedade do espetáculo, o sentimento é de
deslumbramento, no qual o sujeito desaparece, pois não pensa
nem sente. A arquitetura do espetáculo é grandiosa,
tecnológica, fria, não aceita rastros nem impressões
táteis ou pessoais, não é possível sentir-se,
nestes ambientes, como se estivesse em casa, vários obstáculos
e mecanismos de vigilância impedem.
O próprio ato de julgar não tem o mesmo valor, como
diz Gilles Deleuze (1998), é melhor ser um varredor que um
juiz. Propõe-se achar ao invés de regular e julgar.
Não há mais autoridade com poder e consistência
para enunciar novas regras. O drama do autor se realiza.
Para Giulio Carlo Argan, projetar é um contínuo
exercício de uma crítica sobre a existência;
estabelecendo a relação entre desejo, memória,
crítica, ideologia e previsão do futuro constituinte
do projeto. Argan adverte sobre o problema da responsabilidade do
ato de projetar. Habita-se um mundo legado por gerações
anteriores, marcado pela materialidade e gravidade. Esta duração,
diz respeito às obras que formam o mundo que, em suma, é
o tempo convertido em espaço, tempo no qual nos inscrevemos
em busca de substância e abrigo (Guérin, 1995). O que
se embate, diretamente, ao outro dilema que vem das novas tecnologias
da informação e comunicação, que geram
impacto sobre o mundo material e da gravidade da arquitetura e das
cidades. Pois, as novas tecnologias têm criado ambientes dominados
pelo movimento e deslocamento, e a arquitetura é a disciplina
que encontra maior dificuldade em se deslocar, simplesmente porque
o que caracteriza sua atividade é “locar”, como
diz Peter Einseman.
Contudo, a arquitetura persiste com sua arche (fundamento),
articulando significados de "comando", o lugar de onde
a ordem é dada (Derrida, 2001) e princípios de "valor
comum e social". Segundo Carlos Brandão, é importante
ressaltar esta origem etimológica: pois ensina que qualquer
que seja a obra, é uma obra pública. Além disso,
para ele, a arquitetura é um “instrumento pedagógico”,
celebra a história coletiva, a memória e o universo
ético ao qual se pertence.
O lado tectônico da arquitetura, a techné,
diz respeito ao seu modo de produção; à construção
arquitetônica que é extremamente material, ligada à
gravidade e ao local. A predominância dos novos meios de comunicação
atinge este estatuto material, transforma os deslocamentos e as
formas de habitar. Pois, as redes invisíveis, voláteis
e o tempo instantâneo prescindem da presença física,
das distâncias, do lugar.
A condição de manufatura e de objeto
da arquitetura determina o “impacto da realidade” (Arendt,
1994) que é sentido e recebido como “força condicionante”
da existência humana. Disso advém o sentido da objetividade
do mundo, como parte da “condição humana”.
O homem não consegue viver sem o domo, sem vida privada,
isto é totalmente na esfera pública (Serres, 1994).
O que permite refletir sobre termos habituais como
doméstico, moradia e propriedade. A partir dos termos do
latim téctum, 'cobertura de casa, telhado', donde 'teto'
e, por.extensão, 'abrigo, casa'. domus, 'casa, habitação,
família, pátria', o latim moráre 'demorar-se,
ficar, morar, viver com'. E propriedade, ligado ao adjetivo latino
proprius, significando 'próprio, particular', formado de
prope 'perto ou próximo de algo'; depois, torna-se qualidade
especial, além de designar pertença.
As novas tecnologias de informação
e de comunicação
O vazio onde ocorrem os novos meios de comunicação
compõe uma rede invisível, que dissolve antigas fronteiras
e as questões do lugar: onde se situa o que, transformando
os deslocamentos e as formar de habitar. O elemento fluinte urde
o local e o global do sólido ao volátil, ressurgem
os anjos, como mensageiros. (Serres, 1994). As imagens de anjos
dos anos 1980-90 foram sintomas da imaterialidade das novas tecnologias
da informação e comunicação, como no
filme de Win Wenders, Asas do Desejo, e no seu remake, Cidades dos
Anjos.
Michel Serres lembra que as trocas imateriais, virtuais
possibilitadas pelas novas tecnologias da informação
e da comunicação remetem a esta retomada dos anjos,
do deus Hermes deus mensageiro e da leveza, uma das propostas para
a literatura para este milênio de Ítalo Calvino.
O que pensar e como agir quando a comunicação
extrapola as antigas “rotas das peregrinações”?
Quando pode-se deslocar-se sem sair do lugar (Serres, 1994), quando
o tempo prescinde do lugar? Para um arquiteto estas perguntas têm
sérias conseqüências.
O trabalho flexível e imaterial
O enxugamento do número de trabalhadores que solicita desempenho
de múltiplas tarefas, centrado na competência, constante
aprendizado, delineado pelo novo arranjo produtivo capitalista colocou
a arquitetura em cheque. As comutações financeiras,
as de dados, as comunicativas entre outras coisas por sua ênfase
na velocidade, tempo real, pelos efeitos de compressão do
espaço-tempo prescindem do espaço material.
A arquitetura tem estado em apuros depois da telemática
e da globalização. Com o domínio da ciência
do movimento (a logística), o peso dos lugares na produção,
na circulação e no consumo “parece” ter
se reduzido. Em contrapartida, o modelo de produção
mundial, disperso que está emergindo, ultrapassa os limites
da fábrica, usando toda cidade (o mundo inteiro), como organismo
cooperativo, interativo, acumulativo, vivo. No entanto, poucas são
as cidades que podem obter um retorno econômico desta “vampiragem”,
até positiva para a vitalidade dos espaços urbanos
em grande parte dos aspectos.
Paul Virilio (1993) chegou a dizer que a arquitetura
tornou-se uma disciplina decadente. A “não cidade”
que aparece fragmentada e dispersa, lotada de espaços vigiados
tipo container, que exigem protocolos de entrada deve ser estudada
e confrontada. Sempre haverá necessidade de habitar, circular,
viver, problemas bem reais, e ainda há demanda de alguém
que tome este desígnio a seu cargo. É uma tarefa intransferível,
detectar os problemas e dificuldades, impostos pelas novas circunstâncias
do mundo da produção, do trabalho e das relações
sociais. A dinâmica dos acontecimentos não admite respostas
prontas, nem manuais de instrução.
Habitantes e arquitetos em situação
ondulatória
Permanece o velho dilema da arquitetura o arquiteto faz obras para
outros habitantes. Porém estão ocorrendo mudanças
comportamentais, às quais se deve ficar atento. Paul Virilio
fala do homem imóvel, vidrado da interface da tela e da necessidade
política de se pensar a “lei do menor esforço”.
Bauman (1998) fala das distâncias cada vez mais sociais, do
movimento restrito dos excluídos numa sociedade que se diz
do movimento e da velocidade, refere-se aos protocolos de segurança
e as senhas de acesso tanto em portais reais quanto virtuais. Deleuze
(1992) refere que o homem moderno disciplinado, com determinado
padrão de gosto, foi substituído pelo homem endividado,
enredado. O flanêur foi substituído pelo homem que
adapta sua percepção do zapping, ou seja, de imagens
intermitentes. O morador da cidade que se vai projetar. Fragmento
do texto a sociedade do controle, Gilles Deleuze (1992):
“Nas sociedades de disciplina não se
parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna
à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca
se termina nada, a empresa, a formação, o serviço
[...]. São uma moratória ilimitada [...]. As sociedades
disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica
o indivíduo e o número de matrícula que indica
sua posição numa massa. [...] é ao mesmo tempo
que o poder é massificante e individuante. [...]
Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não
é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra:
a cifra é uma senha [...].
O homem da disciplina era um produtor descontínuo de energia,
mas o homem do controle é antes ondulatório, funcionando
em órbita, num feixe contínuo. Por toda parte o surf
já substituiu os antigos esportes”.
O surfista é uma figura interessante porque
tem que saber interpretar a onda senão não poderá
usufruí-la. Tanto os habitantes quanto os arquitetos estão
na situação ondulatória, adquirir a senha é
poder participar dela e contraindo as dívidas impostas pelo
enredamento do qual não se pode escapar. Pois, não
há mais terra incógnita e limites fixos. O planeta
e o sistema solar foram tomados, nenhuma porção da
terra está livre do controle dos GPS, do mercado e dos impostos.
Os mapas estão sob o domínio do circuito de segurança
do Big Brother, mas há zonas autônomas abertas, segundo
Hakin Bay, elas deslocam-se todo o tempo para ficarem invisíveis
à cartografia do controle.
Fontes
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Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995
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São Paulo. Revista Caramelo. FAUUSP, 1994
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- JAMESON, Frederic. Espaço e Imagem. Rio de Janeiro: Ed.
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- MENDONÇA, Denise Xavier. Rossi e Eisenman... Freud explica!
- ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental, transformações
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- TELLES, Sophia da Silva. Crítica de Arquitetura. São
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- VIRILIO, Paul. O Espaço Crítico. Rio de Janeiro:
Ed. 34, 1995
Notas
1 - Texto apresentado
no dia 30.03.2004.
2
- Professora no Departamento de Arquitetura e Urbanismo Car/UFES.
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