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CULTURAS E TEMPORALIDADES1
Aissa Afonso Guimarães2

Este artigo propõe uma breve retomada dos valores que balizaram o pensamento estético na cultura ocidental, no sentido de compreendermos a quebra da hegemonia dos valores tradicionais, que aponta para uma profunda transformação da visão estética de mundo.

A contemporaneidade vive a ruptura com as noções de universal, verdade, razão, identidade, sujeito, cultura, que fundamentavam a identidade histórica, o pós-modernismo nasce como uma nova forma cultural em que a tradição ocidental é ultrapassada pela emergência de um “novo” mundo das fragmentações efetivadas pela tecnologia, pelo capital transnacional, pelo consumo e pela indústria cultural.

A leitura das manifestações estéticas/artísticas traz consigo um longo processo de interpretação dentro da cultura ocidental, nos últimos séculos, a leitura imediata, espontânea problematizou-se, transformou-se num problema filosófico, que diz respeito às formas de relacionamento do homem com o mundo e com a cultura. Esboçaremos, de um modo geral, as mudanças estruturais no campo da estética na modernidade, com a finalidade de compreendermos os pressupostos teóricos, nos quais se afirmava os valores da cultura ocidental.

Na modernidade, o discurso sobre a estética apoiava-se nos métodos experimentais das ciências (fisiologia, psicologia, etc.). “A estética nasceu como um discurso sobre o corpo”, assim inicia Terry Eagleton (1993) o primeiro capítulo do livro intitulado A Ideologia da Estética, remetendo-se à formulação original de Baumgarten. Isto quer dizer que a estética (enquanto área do conhecimento) não nasceu como uma formulação conceitual sobre a arte, mas (conforme o próprio termo designa no grego: aisthesis - percepção, sensação) como uma reflexão sobre a totalidade do sensível.

“A essência de um sentimento (o processo de viver uma emoção) não é uma qualidade mental ilusória a um objeto, mas sim a percepção direta de uma paisagem específica: a paisagem do corpo.” (DAMÁSIO, 1996, p.14)

Baumgarten ao introduzir o conceito de estética, em sua obra intitulada Aesthetica datada de 1750, propôs racionalizar o corpo, o sensível, representando essa totalidade em contraposição ao pensamento lógico-racional; por isso, ela se desenvolveu como uma forma mediadora das universalidades da razão e dos particulares livres, uma ciência inferior (no domínio da razão idealista) cuja função é abrir e ordenar as unidades estéticas à análise racional, como um domínio híbrido da existência capaz de elevar a totalidade do sensível ao conhecimento científico.

A estética cria, portanto, uma lógica interna e um discurso próprio, gerado do reconhecimento de que o “mundo sensível” – percepção e experiência - não pode ser absolutamente derivado das leis e categorias abstratas do pensamento racional.

A concepção do sujeito racional, pensante e consciente, situado no centro de todo conhecimento, é inaugurada na modernidade. Descartes (1596-1650) postula a res cogitans, a substância pensante, que tem uma dupla importância filosófica: apresenta-se como paradigma para as intuições que deverão suceder-se numa clareza plena (Cogito, ergo sum); e repercute no campo da metafísica – como princípio ontológico, significando o encontro pelo pensamento de uma substância (aquilo que subsiste a toda dúvida cartesiana). Assim, decorre todo o empenho da filosofia pós-cartesiana em distinguir o domínio dos sentidos e subjugá-los à atividade dominadora da razão. Com o deslocamento da idéia de Deus como centro do universo, constrói-se a concepção de “indivíduo soberano”, o sujeito do Iluminismo (racional, pensante e consciente) .

O pensamento de Kant aprofunda a “crítica da razão”, para ele o problema fundamental, a razão, está no tempo, pois as possibilidades do conhecimento só podem ser pensadas a partir das intuições puras a priori, o espaço e o tempo. Estes conceitos têm seu começo no entendimento, e seu princípio como intuição, isto significa que somente através da sensibilidade podemos ser afetados por objetos, é ela a faculdade que nos fornece as intuições, mas somente o entendimento é capaz de pensá-los como conceitos. Na Estética Transcendental (primeira parte da Crítica da Razão Pura), Kant explicita o fim para o qual todo pensamento tende: a intuição.

As intuições a priori são as condições de possibilidade de qualquer representação, ou seja, somente por intermédio delas é possível qualquer conhecimento. Contudo, proposições sintéticas a priori só são possíveis a partir de intuições puras a priori, respectivamente: o espaço e o tempo, que em forma pura podem estar sinteticamente ligados aos conceitos que são pensados no entendimento; “mas tais juízos, por esta razão, nunca podem ultrapassar os objetos dos sentidos e apenas têm valor para objetos da experiência possível.” (KANT, 1985, p. 87)
A demanda da Alemanha pela estética, no século XVIII, intensifica-se apoiada na ideologia do sujeito burguês, na medida em que determinados estratos profissionais produzem uma casta intelectual que exerce uma liderança além da aristocracia. No Iluminismo, a estética começa, então, a pensar as manifestações artísticas na categoria do sujeito, como modelo de subjetividade do homem burguês, conferindo-lhe autonomia, isto é, expondo-a no mercado.

Na tradição do pensamento ocidental, Hegel é o último filósofo a considerar que a finalidade da arte está na manifestação do divino no mundo sensível; contudo, Hegel não perde seus propósitos idealistas. A antiga dicotomia entre sujeito e objeto atravessa toda a estética hegeliana, garantindo à arte um lugar entre a materialidade pura e o pensamento ideal.

A novidade da reflexão hegeliana está na dinamização das reflexões metafísicas sobre as relações entre matéria e forma, e na superação da hegemonia kantiana da dicotomia, pois no caminho fenomenológico, o Absoluto já se faz presente no ponto de partida do percurso, integrando, desde sempre, o processo da verdade; a experiência da separação só se realiza num segundo momento, destinada a ser superada pelo desenvolvimento dialético.

Embora Hegel afirme que a finalidade da arte está na manifestação da Idéia divina, ele inaugura, a partir de duas considerações, o tema da “morte da arte”. A primeira refere-se ao próprio projeto do idealismo, onde o plano do sensível, inerente às criações artísticas, é, justamente, o que deve ser superado. (BORNHEIM, 1998, p. 20)

“Para os interesses da arte como para a sua produção exigimos de modo geral mais uma certa vivacidade, na qual o universal não se oferece como lei ou máxima, e sim que atue de modo a identificar-se com o ânimo e a sensibilidade; como também na fantasia: realiza-se a unidade entre o universal e racional com a aparência concreta sensível. Por isso, o nosso tempo, segundo a situação geral, não é favorável à arte.” (HEGEL apud BORNHEIM, 1998, p.21)

A segunda consideração remete-se ao deslocamento da arte para a sua representação; a questão hegeliana prenuncia a dissolução da arte, na medida em que a analogia entre a arte e a religião, essa vinculação tão essencial em toda a arte e cultura do passado, entra em crise. A imitação (um dos caracteres humanos básicos dos quais originam-se as manifestações artísticas), ao desvincular-se da criação artística, cede espaço para a representação do objeto, abrindo novas perspectivas para mediações. A comunicação e a expressão artísticas, antes iluminadas pela analogia entre imitação e verdade como manifestação do divino, perde seu lugar para a realidade do sujeito e para a categoria do objeto.

“O distanciamento estético quanto à natureza dirige-se para ela; a esse respeito o idealismo não se enganou. O telos da natureza, em direcção ao qual se ordenam os campos de forças da arte, transforma-a em aparência, em cobertura do que nelas pertence ao mundo exterior das coisas.” (ADORNO, 1984, p. 309)

A idéia de arte autônoma construída por si e para si, fruto do individualismo burguês e do aprisionamento do desejo na forma da lei, faz com que a arte perca sua função social. “A arte, enquanto aparência, é a veste de um corpo invisível.” (ADORNO, id.) Nesse sentido, ela desconhece o próprio corpo, pois o espectador esteta da modernidade conceitualiza aquilo que não vivenciou, transfigurando a arte em ciência.

Na Europa, nos séculos XVIII e XIX, ocorrem transformações estruturais no campo da cultura. O poder se estetiza e passa a ser fundamentado na sensibilidade, nos impulsos espontâneos do corpo. A noção de cultura passa a ser aplicada a uma esfera específica da vida social, relacionada ao modo de vida culto e ao estado de desenvolvimento “civilizatório” de uma sociedade. No campo da estética, com a afirmação definitiva da ordem burguesa, decorre a emancipação da arte.

A expansão da ordem social burguesa expressa-se através da educação racional do desejo pela formação (Bildung) do indivíduo, alcançando as intuições, os sentimentos e os afetos, construindo um novo sujeito, no qual as normas devem estar dissolvidas nos costumes e nos hábitos, inscritas na experiência subjetiva.

“Dissolver as leis nos costumes, no simples hábito impensado, é identificá-las ao próprio bem-estar prazeroso do sujeito, de modo que transgredi-las significaria uma profunda autoviolência. O novo sujeito, que doa a si mesmo, a partir de si mesmo, uma lei indissociável de sua experiência imediata, encontrando sua liberdade na necessidade, é modelado no objeto estético.” (EAGLETON, 1993, p.22)

Os domínios da arte, da literatura e das ciências adquiriram, na modernidade, autonomia e independência, construindo espaços e regras próprios; a arte, ao se afastar do seu valor de culto, ganha valor de exposição. Segundo Benjamin, esse deslocamento de um pólo ao outro ganha alcance histórico pela reprodutibilidade técnica. “À medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que elas sejam expostas.” (BENJAMIN, 1996, p.173)

Ao longo do século XIX, com o desenvolvimento da indústria do livro e da imprensa, a expansão das vias de comunicação, o desenvolvimento de novas tecnologias, a diminuição do custo da produção e a melhoria do nível de vida da população, a cultura dividiu-se em círculos diferenciados: um, restrito aos especialistas, ou às esferas da intelectualidade ligadas às áreas culturais relacionadas às artes e à literatura (em geral); e outro, de cunho comercial, direcionado à maioria possível de consumidores, à parcela maior da população.

“No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência.” (BENJAMIN, ibid. p. 169)

Na contemporaneidade, a forma de percepção das coletividades e o desenvolvimento das diferentes formas de cultura são profundamente marcados pela presença da comunicação de massa e de seus meios transmissores (media).
A comunicação pode ser definida de várias maneiras, Sfez salienta:

”[...] são abundantes as definições convergentes e divergentes: comércio, relações, comungar (no século X), estabelecer uma relação, ação de comunicar alguma coisa a alguém, a coisa que se comunica, o meio pelo qual se comunica (veículo ou caminho), fazer parte, compartilhar idéias ou interesses, chegando à própria troca comercial e a uma figura de retórica pela qual se pede a opinião dos ouvintes [...] Constata-se que nenhuma dessas definições coincide, que cada uma se refere a universos diferentes.” (SFEZ, 1994, p. 38)

O termo comunicação deriva do verbo latino comunicare que significa - compartilhar, tornar comum, implicando sempre participação, estabelecimento de relações, engendramento de uma multiplicidade de sentidos.

A comunicação de massa tem caráter abrangente e cosmopolita, dirige-se a um público indiscriminado e heterogêneo, é sustentada pela economia de mercado e gerida por organizações complexas com ampla divisão e especialização do trabalho, fruto das sociedades industriais modernas. A eficácia e abrangência dos meios de comunicação de massa relaciona-se diretamente com o desenvolvimento tecnológico e com a expansão do capital industrial, que envolvem todo um sistema de maquinarias, incluindo aparelhos e dispositivos para a mediação da comunicação.

A “cultura de massa” é um novo domínio cultural gerado pela comunicação de massa. No entanto, a existência de meios de comunicação capazes de transmitir mensagens a um grande público ainda não é suficiente para caracterizar a existência de uma cultura de massa, pois esta, além de estar necessariamente atrelada a uma sociedade industrializada (capitalista liberal), necessita da existência de uma economia de mercado que sustente a ocorrência de uma sociedade de consumo. A expansão das grandes organizações complexas (fontes organizadas) está atrelada aos imperativos do consumo e ao desenvolvimento tecnológico.

A difusão e o consumo dos bens simbólicos acionados pelos meios de comunicação de massa geram a “cultura de massa” ou a “cultura para as massas”, como denunciam as críticas radicais, ao domínio dos meios de comunicação, desenvolvidas pelos intelectuais da Escola de Frankfurt. Adorno e Horkheimer problematizaram o termo cultura de massa e, formalizaram o conceito de indústria cultural; uma vez que, o uso indiscriminado da expressão cultura de massa poderia sugerir um entendimento enganoso, o de ser uma nova forma genuína de arte popular, ou seja, uma cultura surgida espontaneamente do interior das massas.

A indústria cultural é conseqüência da industrialização (que teve início no século XVIII) e do desenvolvimento de uma economia de mercado (verificada no século XIX), que estruturam a sociedade de consumo. E, a cultura de massa enquanto produto industrial para as massas é um bem de consumo produzido em série, criado para abranger as necessidades de um público cada vez mais amplo e heterogêneo.

“A indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores. [...] Na medida em que nesse processo a indústria cultural inegavelmente especula sobre o estado de consciência e inconsciência de milhões de pessoas às quais ela se dirige, as massas não são, então, o fator primeiro, mas um elemento secundário, um elemento de cálculo; acessório da maquinaria. O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de fazer crer, ele não é o sujeito dessa indústria, mas seu objeto. “ (ADORNO,1977, 287-288)

A crítica negativa da “cultura para as massas”, foi chamada de apocalíptica, por Umberto Eco, numa divisão de autores em apocalípticos e integrados. Para os integrados a revelação e a transmissão das significações do mundo e do homem, comum a toda produção cultural, exercem na indústria cultural a mesma função valorativa, com mais velocidade e maior difusão (alcance das massas), devido ao desenvolvimento da tecnologia dos meios comunicação na atualidade. O que faria da indústria cultural, um elemento possível e eficaz de combate à alienação, por ser o principal meio democratizador da informação. (Bosi, 1994, p. 321)

Para os apocalípticos, que partem da apreciação negativa da indústria cultural, formalizada pela Escola de Frankfurt, a função da indústria cultural exerce um poder “alienante”, constituindo-se como a base do totalitarismo moderno, no qual o indivíduo é levado a não refletir sobre sua condição histórica e o meio circundante.

“Frankstein, um Frankstein tecnológico nos ameaça. [...] Passamos a viver num mundo de máquinas de transportar, de fabricar, de pensar, Frankstein, nosso duplo, aquele que criamos, assume sua autonomia e em seguida o poder. Evidência intuitiva imediatamente compensada por outra crença: graças à comunicação, podemos agora estabelecer um melhor contato com as nações, os grupo, os indivíduos, até com nós mesmos, já que as máquinas de pensar nos esclarecem acerca do nosso próprio espírito.
Duas crenças em oposição, dois antagonismos que se nutrem um do outro.” (SFEZ, 1994, p. 19)


Na Crítica da Comunicação, Sfez desenvolve a análise da comunicação entendendo-a no campo da “tecnocomunicação”; para o autor, as tecnologias da comunicação impõem-se como “uma nova teologia”, ocupando a grande lacuna aberta pela laicização do Estado, da história, de deus, ou seja, dos elementos fundantes da civilização ocidental. A ausência de referencias, as fragmentações e as segmentações ocasionadas pela tecnologia e, a crise de valores na contemporaneidade fazem da comunicação a “[...] Voz única; só ela pode unificar um universo que perdeu no trajeto qualquer outro referente.” (SFEZ, 1997, p. 21)

O pós-modernismo vem a ser esta forma de cultura que reflete a mudança de percepção das coletividades humanas na atualidade; ele é o espelho da diversidade, da instabilidade, do imprevisível, que enfraquece os limites entre cultura popular e cultura erudita e descentra a arte de sua experiência cotidiana. Ele provem da transformação histórica que ocorre nas sociedades ocidentais, para um novo modelo de capitalismo, que rompe com todas as normas e leis construídas desde o Iluminismo.

A idéia da comunicação como “uma nova teologia” oriunda da derrocada dos valores da tradição ocidental, nos remete, em alguns aspectos, ao que Nietzsche narrou, na Vontade de Poder, há um pouco mais de um século como: “a ascensão do niilismo.”

“Descrevo o que virá, o que não mais deixará de vir: a ascensão do niilismo. Desde já esta página da história pode ser contada: porque, no caso presente, é a própria necessidade que a produzirá. [...] A civilização européia agita-se desde muito sob uma pressão que vai até a tortura, uma angústia que cresce a cada década, como se quisesse provocar uma catástrofe: inquieta, violenta, arrebatada, semelhante a um rio que quer alcançar o término de seu curso, que não reflete mais, que teme até refletir.” (NIETZSCHE, 1968, p. 3)

Nietzsche elabora, por intermédio da análise do advento histórico do Niilismo europeu, sua crítica radical à metafísica, à moral e à estética; para o filósofo, o niilismo foi o maior acontecimento, o mais radical, o mais fundamental, que se passou na história ocidental, representando o colapso de tudo o que, até então, havia sido entendido como verdade. No entanto, este processo esteve, desde sempre, fadado à decadência, sua intensificação acelera sua degeneração. A ascensão do niilismo, é condição necessária para o que o pensador chamou da música do futuro: a “transmutação de todos os valores”. A transmutação significa o esgotamento do sentido do universal, do transcendente, para um retorno à sabedoria trágica, intrínseca ao entendimento “estético” da vida; pois “a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético.” (NIETZSCHE, 1993, p. 19)

 

Fontes

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Notas

1- Texto apresentado em 01.04.2004.

2 - Professora de Filosofia e História da Arte no Departamento de Teoria da Arte e Música/Car/Ufes.