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TEORIA: UM MEIO PARA A POESIA INTEIRA
para o Guilhinski e o Janpaulo
1
Wilberth Claython2

Dado o tempo curtíssimo de que disponho, abandono de imediato a pretensão de convencê-los – ponderadamente – de que a teoria seja parte integrante e inexorável de qualquer gesto interpretativo de um poema. Tomarei como consensual e evidente que todos concordamos nisso (ou seja, da inequívoca “importância da teoria para a produção artística e cultural”, em particular, aqui, a poesia). “Teoria em grego quer dizer o ser em contemplação” [G. Gil]. Teoria é sempre suplementar, em diferença e perspectívica [J. Derrida]. Ler um poema é também sempre acrescentar sentido(s) ao já-pronto, cada poema tendo uma técnica própria e irrepetível, tanto quanto o é a “técnica” de interpretá-lo [O. Paz]. Toda a problemática reside nos limites da interpretação [U. Eco]. Mas a solucionática está – digamos assim – no repertório de cada um (repertório do qual não se pode fugir: somos o que somos) [H. R. Jauss]. Daí, decodificar um texto/poema é entrar no jogo de sua construção (enquanto – no mesmo ato – o leitor se reconhece). Para essa decodificação, considerar – pensando tão-somente e muito no aumento do prazer estético – o máximo de forças possíveis, desde a história da sua produção (passando por motivações ideológicas, pelos estilemas e mesmo por informações biografizantes) [R. Barthes], até a investigação das entranhas dos poemas, seus mecanismos internos de funcionamento, em que se fundem a palavra, a imagem e a sonoridade [E. Pound]. As entranhas, não as entrelinhas [Ana C.]. Sem preconceito, sem estereótipo, sem medo, sem delírio, sem pedantismo, sem ignorância, arrogância ou ódio. Com “olhos livres” [Oswald], com criatividade, com alegria, com mediação, com naturalidade, com pesquisa, malícia e prazer. Assim, torna-se gostoso e nobre ser não um “terrorista”, mas um “teorista” [J. Culler]: curtir o poema: isto é: prepará-lo para o delicioso deleite do sentir pensando: o mel do melhor [Waly].

Para o exercício dessa hipótese – qual seja: lançar mão do que posso na leitura-curtição de um poema –, façamos uma espécie de “pastiche teórico” [L. Perrone-Moisés] a partir de poemas de Paulo Leminski. A título de tática, peguemos estes poemas-modelos para, em torno deles, pensarmos juntos a tal “importância da teoria”. Alternemos – no curtir os poemas – modos de abordar os versos, ora privilegiando algum tópico relacionado às ditas correntes críticas, ora lendo o poema à luz de algum tópico relacionado a algum saber-discurso.
Então, um primeiro poema:

isso sim me assombra e deslumbra
como é que o som penetra na sombra
e a pena sai da penumbra?

Que tal neste texto, após as tantas leituras quantas se devem fazer [A. Candido], apontar o jogo rítmico entre átonas e tônicas (1-3-5-8 / 1-2-4-6-9 / 2-4-7) e a alternância entre os ritmos binário e ternário, associando-os ao próprio jogo claro-escuro – de que, no cerne, fala o poema? E, ainda no estrato fônico, o fantástico e básico recurso de assonâncias e aliterações – que reiteram e antecipam na sibilância do /s/ o movimento reverberativo da palavra “som”? E as palavras-valises [L. Carroll] que também colaboram – agora morficamente – para o jogo de ocultar-esconder, como em “pena”, “penetra”, “penumbra”? Tudo isto, em síntese, é ESTILÍSTICA. Com este auxílio, podemos explicar por que o poema tem como meta falar de si mesmo, intransitivamente, com a “pena” sendo o signo que se desdobra em “dor” e “escrita” – ambas só podendo vir, vindo de um poeta (e não de um burocrata), da “penumbra” que a produz (pois que incorpora a palavra-pena e a ela dá à luz). Pena, pois, e penumbra se irmanam, como, antes, o som e a sombra. Avançar a pesquisa e, por exemplo, detectar oxímoros e quiasmos barrocodélicos [Haroldo de Campos] em “assombra / deslumbra” (escuro / luz), e em “som / sombra” (barulho / silêncio) seria fazer um pouco do close reading do NEW CRITICISM. Se, mais (muito mais) ousadamente, nos propusermos a recuperar e estender o sentido do “penetra” para o campo da sexualidade, poderemos então enveredar – com o bom senso que sempre se recomenda – pelas sendas da PSICANÁLISE, “escutando” no poema os ecos de uma erótica verbal que faz os vocábulos se friccionarem e, de fato, se penetrarem, mimetizando na linguagem poética o movimento que as línguas e os corpos, entre mulheres e homens, sexualmente realizam. Aqui, [lacanianamente] seria de bom-tom lembrar que ressoa pelo poema a forma-idéia de pênis, que, no latim penis, significa “pincel”, tão fálico e símbolo criador quanto a verticalidade da “pena” e de toda ETIMOLOGIA que “penetra” pelas palavras. Mais um passo (Leminski me perdoe o quadradismo) e estamos no reino da FILOSOFIA, perscrutando se o que há de racional e lógico na mistura de elementos díspares não é senão a própria inauguralidade da linguagem [Heidegger, Wittgenstein]. Aí, lembraríamos, quiçá, o que já disse o FORMALISMO russo ao mostrar que arte é estranhamento (desautomatização: ruptura com os padrões estéticos e com a previsibilidade do senso comum) [Chklovski]. Estivéssemos, nesta altura, numa tese de doutoramento, e aí, com o amparo ainda da psicanálise e da notícia BIOGRÁFICA, acrescentaríamos tratar-se de um poema publicado em livro póstumo, chamado La vie en close, de 1991, cujos poemas foram, pouco antes, selecionados pelo poeta com a companhia de Alice Ruiz, que (parecendo descrever o poema em pauta) diz na orelha: “Esses poemas, mais que quaisquer outros, estão cheios de noites e madrugadas adentro. Cheios de uma dor tão elegante que é capaz de nos fazer rir, apesar de tudo. Cheios de dias na vida de uma luz”. Doente, cirrótico, o poeta – quem sabe – tentava extrair do espanto da morte próxima fachos de luz e força na pulsão de criar. Mas verdade, centro, origem são conceitos dos quais a DESCONSTRUÇÃO nos instilou a desconfiar. Daqui em diante, na tal tese de doutoramento, o teor teórico adensar-se-ia e, mas, como não estamos numa defesa, recuemos para, isso sim, outro poema:

ameixas
ame-as
ou deixe-as

Publicado em livro de 1981 (Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase), o poema pede, em primeira instância, um despojar-se da grandiloqüência, ao colocar chistosamente num pedestal algo tão sem importância vital – ameixas (pelo menos, mesmo para os que de fato adoram ameixas, no âmbito de uma decisão transcendental entre “amar” ou “abandonar”). Para provocar o tal estranhamento formalista, o chiste bastaria, com seus efeitos de condensação e deslocamento [Freud]. Um leitor curioso e aventureiro [Nietzsche] desconfiaria de tão referencial mensagem, e iria, com o auxílio da teoria LINGÜÍSTICA, à cata de outras funções ali p’ululando [R. Jakobson] – decerto as funções poética e metalingüística. Visível é um recurso também utilizado no poema anteriormente referido, o de tirar de uma palavra outra palavra (“ame” + “as”, e “eix” + “as” de “ameixas”), que o poeta num estudo de CRÍTICA LITERÁRIA sobre Bashô e o haicai denominou kakekotoba: “É a passagem de uma palavra por dentro de outra palavra, nela deixando seu perfume. Sua lembrança. Sua saudade”. (Som e sombra, pena e penumbra.) Ainda o leitor curioso – mais velho ou bem informado – acabaria se lembrando ou descobrindo tratar-se o poema de uma bem-humorada paródia sobre os negros anos da ditadura, quando o governo militar divulgou por todos os rincões o slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, que nutriu de ilusão e má-fé toda uma geração de ingênuos e iletrados (nem falo da geração TFP...). Reduzido, por analogia, a uma ameixa, o país (seus despóticos representantes) se perde na plenipotência da arrogância e da propaganda enganosa, ao produzir retoricamente um discurso midiático de acusação, chamando os exilados (e, por extensão, os presos e assassinados pelo regime) de “traidores” e “subversivos”. É o tipo de poema que nos incita a rever a memória pátria, sem ufanismos tolos ou xenofobias tacanhas. Assim, sob os auspícios da lírica que fratura o conformismo social [Adorno], revisitamos décadas passadas sob o olhar da HISTÓRIA, da SOCIOLOGIA, da ECONOMIA, das CIÊNCIAS SOCIAIS, da ANTROPOLOGIA e áreas afins, quem sabe na orientação da teoria crítica de Walter Benjamin e de Adorno, de um lado, resgatando o olhar dos vencidos e questionando os valores pasteurizantes da indústria cultural, e de Alfredo Bosi e de Antonio Candido, de outro, pensando numa sociedade em que a poesia é resistência, e a literatura, um direito de todos. Hoje, 1º de abril, em que se comemoram, às avessas!, os 40 anos do golpe militar, as ameixas leminskianas vêm desrecalcar fantasmas que, às quandas [G. Rosa], nos assolam. Poesia é para não esquecer [J. L. Werneck].

Por fim, visto que meu curtíssimo tempo deve ter-se esgotado, leio sem delongas um terceiro e último poema, agora do livro Distraídos venceremos, de 1987:

O ATRASO PONTUAL
Ontens e hojes, amores e ódios,
adianta consultar o relógio?
Nada poderia ter sido feito,
a não ser no tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.
Bênçãos e desgraças
vêm sempre no horário.
Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontro
entre o tempo e o espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que eu faço?

Com o jeito de quem hesita, “entre a pressa e a preguiça”, mando às favas as veladas citações entre colchetes [Compagnon...] e assumo sem temor o horizonte de expectativas que me constitui, e me rendo à mais impura recepção, e abdico de passear pela cristalina questão central do poema – a relação entre Amor e Tempo – para despedir-me propondo novo seminário: “A importância da poesia para a teoria”. Que venha. “Etc.” [Caetano]. Obrigado.

 

Notas

1 - Texto apresentado em 01.04.2004.

2 - Professor no Departamento de Letras/Cchn/Ufes.