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Um
olhar brasileiro na História da Arte1
Raimundo Carvalho2
Como o assunto deste seminário é sobre
a importância da teoria, preciso então começar
essa minha intervenção refletindo sobre as possíveis
intenções que moveram a organização
deste evento. Primeiramente, desconfio que na base desta preocupação
possa haver algum fantasma da esquizofrenia que separa, de um lado,
um saber abrangente e especializado, chamado teoria e, de outro,
um objeto que precisa ser arrancado a todo custo da sedução
do senso comum, do convívio e da experimentação
ordinária do não especialista. Nesse sentido, devo
de dizer, mesmo quebrando expectativas, que, no campo em que transito,
nenhum saber, nenhuma experiência é desprezível.
A hierarquização não se dá entre saberes
e percepções eruditas e populares, mas no interior
mesmo de cada uma destas formas.
Subjacente também a essa preocupação
com a “teoria”, temo também que haja aí
um conceito equivocado de que ela seja algo consolidado e testado,
portanto, pronta para ser usada e aplicada a casos particulares.
Esse tipo de esquema mental se aplica sobretudo em contextos de
forte dependência econômica e cultural. Nesse caso,
a teoria é percebida apenas como um argumento de autoridade,
em razão de sua procedência de um centro irradiador
de modas e tendências. Contra isso não há como
lutar, pois desse prestígio do centro dependem os que participam
do jogo e das representações do mundo acadêmico
na periferia do capitalismo globalizado. O multiculturalismo está
aí para ordenar hierarquicamente os saberes, as experiências,
e dar a cada etnia, a cada grupo social, os seus quinze centímetros
de glória, sem que se arrede um milímetro sequer o
domínio de um poder centralizador. Contra essa espécie
de fascínio, de tara intelectual herdada de nossos ancestrais,
não há pajelança que nos cure, nem mesmo uma
“Semana de Arte Moderna” por mês que dê
jeito ao nosso complexo de dependência cultural. Faz parte
do jogo social das elites pensantes a manutenção desse
estado sombrio de estagnação mental e aquilo que deveria
ser uma colaboração inteligente entre pares, o trânsito
sem fronteiras das idéias, adquire tonalidades de farsa,
em que intelectuais periféricos, muitas vezes, se prestam
ao papel de sucursal de figurões do mundo acadêmico
europeu ou estadunidense.
Agora, quando se declara, unilateralmente, diga-se
de passagem, o fim das grandes narrativas como o cristianismo, o
marxismo e a psicanálise, entre outras, abre-se um vasto
campo para as certezas de encomenda, para o retorno das ideologias
particularizantes e para as acomodações gregárias.
Contra esse tipo de paralisia, devemos devotar todo empenho teórico.
Pensar teoricamente para mim significa primeiro
não renunciar ao que somos. Para além de qualquer
particularismo ou nacionalismo, creio que devemos nos empenhar em
reconhecer as nossas diferentes práticas perceptivas que
nos constituem como seres portadores de características humanas
próprias que, se reveladas de forma íntegra, só
enriquecerão o acervo das práticas sociais em geral.
Não renunciar a pensar as condições concretas
em que se desenvolve a nossa existência histórica é
um imperativo para se pensar com autonomia. Um pensamento que se
quer dependente é algo não cogitado, é pura
coação.
Pensando, pois, a partir de uma prática perceptiva, não
podemos separar a teoria da experimentação daquilo
sobre o que se quer teorizar. Uma teoria para ter alguma validade
deve se embasar numa contemplação intensa, numa vivência
profunda do objeto. Conceitos teóricos podem ser transferidos
ou intercambiados, mas jamais substituirão uma percepção
direta e intensiva do objeto.
Desse embate entre sujeito e objeto nasce uma reflexão
teórica capaz de iluminar outras práticas perceptivas.
A imaginação teórica, a criatividade conceitual,
está sempre vinculada a uma atenção cerrada
aos dados concretos da realidade. Daí a impossibilidade,
em ciências da complexidade, de uma aplicação
sistemática e pontual de leis gerais observadas em outros
campos da realidade. Muitas vezes parecemos esquecer de que os tais
“teóricos”, com cujas “teorias” dialogamos
em nossas pesquisas, estavam empenhados em esclarecer e iluminar
questões concretas.
É com tristeza, impaciência e desapontamento
que leio textos que começam sempre por uma citação
de um autor, geralmente, estrangeiro, totalmente descontextualizado
da tradição interpretativa em que foi gerado e que,
ao mesmo tempo, demonstram um desconhecimento ou desprezo total
pela tradição do comentário nativo. É
absurdo perceber que em textos sobre autores brasileiros fartamente
estudados alguém possa fingir desconhecimento dessa tradição
textual rica e multifacetada. Enfim, é melhor não
me alongar sobre isso, senão saímos do império
da teoria e caímos na roda-viva da moda.
Como está referido no título desta
intervenção, a finalidade desta é apresentar,
ainda que de modo sucinto, a figura do poeta Murilo Mendes como
uma espécie de paradigma moderno dos modos de reflexão
e relacionamento com os conceitos, nomes e movimentos da história
da arte. Dentre os artistas modernos brasileiros, Murilo Mendes
foi aquele que chegou mais perto do ideal de uma arte antropofágica
de exportação, preconizada por Oswald de Andrade.
Poeta de tendência universalista, Murilo não
deixou de refletir em sua obra um vivo interesse em estabelecer
modos de sensibilidade expressivos do povo brasileiro, cuja cultura
procurou conhecer com o mesmo empenho com que se debruçava
sobre outras matrizes culturais, ciente de estar colaborando para
o alargamento e prestígio dessa cultura, da qual ele se sentia
representante. Daí o seu interesse pela história brasileira,
pela sua tradição literária e pictórica,
pelas suas formas de convivência social.
Firmemente assentado neste solo, Murilo Mendes não
se furtou em participar, de modo altivo e competente, do debate
que se travava no plano internacional. Foi um dos primeiros intelectuais
a brasileiros a fazer uma transculturação conseqüente
das propostas surrealistas para o contexto brasileiro. Desse movimento,
jamais endossou os procedimentos da escrita automática, que
cedo se revelaram inócuos. Mas soube compreender as inovações
na sensibilidade trazidas pelo surrealismo e soube agregar a elas
a força de sua personalidade artística.
Como poeta e homem de cultura, a atuação
de Murilo Mendes abrange desde os primórdios da década
de20 até os meados da de 70, tendo, portanto, participado
de todas as importantes questões estéticas que marcaram
o século 20 no Brasil e na Europa, para onde se transferiu
no final da década de 50. No Brasil, Murilo Mendes foi parceiro
de aventura literária dos modernistas de São Paulo,
em cujas revistas colaborou, conviveu com Drummond, Bandeira e Jorge
de Lima, no Rio de janeiro. E desde sempre esteve ligado ao movimento
musical e plástico. Escreveu colunas sobre música
e artes plásticas nos jornais cariocas, ajudando a consolidar
nomes como o de Tarsila do Amaral, Portinari, Di Cavalcanti e Ismael
Nery. Foi amigo íntimo deste último, de quem herdou
um estranho sistema de idéia denominado “essencialismo”,
com pontos de contato com o surrealismo, primando pela recusa à
especialização, manifestada na idéia de que
era mais importante viver a poesia do que escrevê-la, e pela
postura provocativa e utópica de atribuir à arte uma
missão regeneradora.
No final dos anos 50, quando se transferiu para
a Europa, Murilo Mendes, homem sem profissão definida no
Brasil, mas de reputação literária consolidada,
reúne em torno de sua figura carismática a nata da
intelectualidade artística romana, atraída pela sua
inteligência e pela sua sólida formação
cultural. Lá, o mineiro de Juiz de Fora, tendo logo aprendido
o idioma italiano, se tornou figura obrigatória nos acontecimentos
artísticos, dos quais participava seja como crítico
convidado, seja como professor de cultura brasileira na Universidade
de Roma. Ajudou na apresentação de muitos artistas
jovens da vanguarda italiana dos anos 60 e foi interlocutor de poetas
expressivos como Ungaretti e Montale. A sua presença fez
sentir também na Espanha e em Portugal, para onde viajava
constantemente.
Mesmo distante do Brasil, Murilo continuou atento
ao que se produzia aqui e foi um dos primeiros modernistas a acolher/entender
as propostas do concretismo. Foi amigo de João Cabral de
Melo Neto a quem influenciou e por quem foi influenciado. Sua obra
traz a marca de sua inquietante personalidade. Contemporâneo
de si mesmo, fez de sua arte um método contra a esclerose
e o embrutecimento.
Os seus conceitos, procedimentos, referências
e alusões às artes plásticas estão disseminados
por toda a sua obra e vão desde poemas sobre quadros e pintores,
textos de catálogo de exposição, textos introdutórios
a livros de arte, artigo de jornal, e mesmo em sua vasta literatura
de viagem. Murilo compreendia o mundo como um grande livro, um museu
a céu aberto e toda a sua percepção da realidade
era mediada pela arte e pelos conceitos e vivências veiculados
pelas obras, fossem elas literárias, musicais ou plásticas.
Gulio Carlo Argan, escrevendo sobre a crítica
de arte exercida por Murilo Mendes, diz ser ela “um gênero
literário, um capítulo do seu trabalho poético,
sendo que muitas vezes o texto crítico conserva a métrica
e a forma de um poema e nasce muito freqüentemente como fato
poético e depois, numa versão posterior, configura-se
como prosa que se serve discreta e espontaneamente da terminologia
da crítica de arte3”
. Têm-se aqui uma descrição exata do método
muriliano de crítica que une intuição e pesquisa
no mesmo gesto configurador.
“Ao fundir a abordagem dissertativa dos artigos
à lírica, Murilo Mendes não se limitou a “poetizar
“ a crítica, foi mais fundo, associando dois modos
de percepção do real, o racional e o intuitivo. A
origem de um novo discurso sobre arte pode ser acompanhada em A
invenção do finito, na própria progressão
cronológica dos textos4”
, conforme expressão de Martha Moraes Nehering, para quem
o formato atingido por Murilo se aproxima da “forma do ensaio”
preconizada por Adorno. Neles se observa a preocupação
com a história, com o modo como as questões estéticas
se associam com os temas candentes da sociedade e do momento histórico,
ao mesmo tempo em que se observam questões de interesse específico
ligadas a técnica construtiva do poema ou do quadro, num
cruzamento equilibrado entre a abordagem formalista e histórica.
O caráter genuíno da percepção
muriliana do mundo e da arte está contido em sua capacidade
de reunir em sua arte os antagonismos, numa “síntese
de culturas, de acordo com a nossa vocação e fatalidade
histórica5"
, nos termos em que ele mesmo expressou no “retrato-relâmpago”
que fez da obra de Tarsila do Amaral. Nesse sentido, a obra de Murilo
Mendes, configura-se como um grande móbile, no qual se equilibram
com elegância as várias tendências artísticas
de seu tempo, os nomes mais díspares, as formulações
mais diversas, num todo que tudo abriga. Daí a sua validade
e sua permanência, não só para os amantes da
poesia, mas também para os freqüentadores das artes
plásticas e da música.
Fontes
- ARGAN, Giulio Carlo. “O
olho do poeta ou les eventails de Murilo Mendes”. Trad. Murilo
Marcondes de Moura. Folha de São Paulo, Caderno Letras, p.
6, 11 de maio, 1991.
- GUIMARÃES, Júlio Castañon. Territórios/conjunções.
Imago, Rio de Janeiro, 1993.
- MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Aguilar, Rio de Janeiro,
1994.
- NEHERING, Marta. “A invenção do finito. Suplemento
Literário , Ano 37, n. 1262, Belo Horizonte, maio, 2003.
Notas:
1 - Texto apresentado
em 29.03.2004.
2 - Professor no
departamento de Letras/Cchn/Ufes.
3 - ARGAN, 1991.
p. 6.
4 - NEHERING, 2003.
p. 11.
5 - MENDES, 1994.
p. 1250.
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