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O ANJO DE RENATA
Exposição realizada pelo VIII Congresso
Internacional de Mosaico Contemporâneo
Museu de Arte do Espírito Santo, Vitória-ES
Setembro a novembro de 2002
Artista: Renata França
Obra: Anjo, 2002
30 x 70 cm
Assim é seu anjo: não é leve,
transparente ou luminoso. Tornou-se bruto, pesado, terreno, estranho.
A pedra como aparece na natureza, é escolhida pela artista
conforme a sua forma, que se parece com as asas, a cabeça,
o corpo do anjo.
Um anjo pesado que parece não conseguir voar, afinal, suas
asas são de pedra. Um anjo sem rosto não é
um dos famosos, é um dos muitos em seus serviços contínuos.
Um anjo com o coração que insiste em ficar na terra,
pelo ferro retorcido que amarra seu coração. Onde
estarão as penas, a transparência, a luminosidade do
anjo?
Essa tensão entre o angelical e a forma artística
conduz o olhar para uma obra repleta, que foge às representações
tradicionais de anjos. Imperando a estranheza sobre a beleza, no
sentido clássico, das perfeitas proporções.
Seu aspecto bruto e terreno é o começo para uma ação
reflexiva sobre a obra, numa tentativa de compreensão de
seu processo construtivo.
Há oito anos Renata França vem trabalhando
com o mosaico e o Anjo, uma de suas obras mais recentes, marca uma
fase de trabalhos ligados a natureza. É marcante em suas
peças atuais, cascas de árvores, pedras brutas, madeira,
formando um conjunto com as tecelas de cerâmica ou vidro industriais.
Com formação em arquitetura, Renata
iniciou sua trajetória no mosaico produzindo peças
ligadas à decoração. Sem conhecimento das técnicas
adequadas, trabalhando com formas ligadas aos modelos acadêmicos
e ao desenho clássico, a artista viveu nessa fase, erros
e acertos. Limitada pela falta de conhecimento técnico e
por uma considerável quantidade de erros, a artista desistiu
do mosaico.
Mesmo assim, sentiu necessidade de estar envolvida
no mundo artístico, já que sua vontade de produzir
ainda continuava. Procurou na pintura uma saída para superar
suas limitações com o mosaico, com a expectativa de
ter bons resultados com as tintas e os pincéis. Seu exercício
na pintura abriu portas para uma ação reflexiva sobre
arte, onde iniciou um caminho de encontrar sua expressão
particular.
Renata, a partir dessa experiência, viu que
era possível retornar ao mosaico, sua grande paixão,
com uma discussão conceitual, onde o comprometimento artístico
superaria o comercial. Ela viveu um despertar de criatividade e
liberdade artística, e, consequentemente, descobriu que sua
técnica precisava ser apurada. Nessa relação
estreita entre criatividade e técnica, a artista encontrou
a liberdade de utilizar o metal. Renata viveu assim descobertas,
e a técnica, que antes a fez desistir quase por completo
do mosaico, foi dominada pela artista sendo suporte seguro para
a criatividade artística.
Pertencem a essa nova fase, desenhos mais soltos
que tendem à abstração. Os materiais e peças
foram ganhando mais importância, gerando obras que vão
além do plano bidimensional, com texturas e relevos em que
tato e visão se deleitam ao mesmo tempo. No entanto, a artista
continuava iniciando o processo criativo na prancheta, gerando peças
marcadas pelo design decorativo.
Na fase atual, Renata França vive a prática
de um trabalho em que vai além, da técnica precisa,
de projetos de prancheta e da previsão do resultado. Seu
trabalho é uma das tecelas, de um grande mosaico contemporâneo
em que muitos artistas se aventuram pela corrente do inusitado e
da construção de mosaicos que vão além
de restos de azulejos e pastilhas. Utilizam materiais brutos encontrados
na natureza, objetos não mais utilizados, argila, ferro retorcido,
plástico, madeira, enfim, o artista acaba por participar
da era da reciclagem, gerando mosaicos que compreendem o mundo em
que vivemos e praticam esse mundo.
Renata entendeu que, na arte, a estética
e a criatividade caminham juntas proporcionando inúmeras
possibilidades. A artista libertou-se do pensamento de muitos leigos
em relação à arte, de que é necessário
seguir modelos clássicos para ter um resultado artístico
de boa qualidade. Dessa linha de pensamento e iniciativa artística,
Renata começa a produzir obras como Anjo, denominadas por
ela mesma como peças de museu sem a intenção
prévia de venda.
Assim como os modernos experimentavam a prática
do novo, os mosaicistas contemporâneos vivem esse momento
de novidade. A experiência de desprender o mosaico de uma
função puramente decorativa, em que o resultado deveria
ser compatível com a moda, permitiu um estudo e a utilização
de materiais alternativos que elevaram o mosaico a categoria artística,
como a pintura, a escultura, indo além do decorativismo ligado
à arquitetura, para virar peça de museu.
Essa experiência de um descomprometimento
com a decoração e uma produção centrada
no estudo de novos materiais geraram mosaicos inusitados e diversificados,
tanto nas formas e nos desenhos como nos materiais utilizados.
Sobre seu trabalho atual com o mosaico, Renata acaba
por sublinhar essa prática contemporânea:
“... não
é mais criado na prancheta, nem feito apenas de cerâmica
e material industrial sobre uma base plana com a cola certa. Da
natureza vem elementos lapidados e talhados pelo tempo que se unem
ao que não serve mais ao homem e foi botado fora”...
“Agora, o mosaico não é mais artesanato, não
é útil, não é feito sob encomenda e
nem é feito para “enfeitar”. Ele é uma
forma de expressão artística como a pintura, a escultura,
a música e o ballet o são. Uma técnica milenar
e um novo olhar para compreender a vida, a natureza e as relações
humanas e divinas.”1
Notamos através dessas palavras, juntamente
com a trajetória da artista, um sinal para entendermos a
obra Anjo. Um ser celestial, mas que nos remete à terra,
por suas cores terrosas e seu aspecto rústico e primitivo.
Um anjo formado por pedras brutas encontradas na natureza, que tem
seu tronco composto por vergalhões finos de ferro enferrujados
pelo tempo, mas que na verdade, um dia foram uma luminária
numa estação de trem.
Mesclando material industrializado como ferro, chapa de metal e
pastilhas com pedras talhadas pelas correntes do rio, Renata harmoniza
o industrial com o natural. A escolha das pedras se deu de maneira
minuciosa, antes mesmo da obra surgir em sua mente, como conta a
artista. Em sua mania de catar e guardar objetos, como bibelôs,
peças em metal, pedras, pedaços de árvores,
Renata tem em suas mãos inúmeras possibilidades para
a construção de seu trabalho.
Mas para compreendermos a utilização
desses materiais, esbarramos em fatos intimamente ligados a questões
pessoais da artista. O Anjo foi produzido numa época em que
Renata, em sua prática com a ioga, estava centrada no chacra
relacionado à terra. Outra fonte de influência está
no resgate da natureza na vida da artista, especialmente na sua
observação e na beleza que esta emana. Daí
seu anjo ser composto por pedras, elementos da natureza repletos
de formas variadas. No entanto, os anjos são seres espirituais,
não fazem parte da natureza que cerca os humanos, estão
em outra dimensão. Porém, o Anjo de Renata é
totalmente terreno, assim como a artista estava naquele momento.
A racionalidade dessa fase, ligada ao chacra da
terra, esbarra com o cuidado da artista ao encaixar as pedras e
na colocação ritmada das pastilhas azuis e brancas
que compõe o fundo da peça. Renata conta que não
iniciou sua obra com a intenção de gerar um anjo,
mas o encaixe das pedras levou a formação de um desenho
que se aproximava da forma de asas de um ser celestial. Sendo assim,
iniciou-se o processo de conclusão da figura, onde nenhuma
pedra foi cortada, mas escolhida pela artista minuciosamente. Cada
pedra pedia outra pedra e Renata era responsável por encontrá-la.
No modo como trabalha as pedras, nas quais imperam
os tons terrosos, percebe-se o cuidado da artista em equilibrar
a coloração das mesmas e em encaixar as que melhor
lhe serviam. As pequenas pastilhas azuis e brancas e as pedrinhas
semi-preciosas compensam a brutalidade das pedras maiores, dando
um toque de delicadeza ao todo. Gerando uma obra repleta de equilíbrio
nas cores, proporcionalidade e encaixe das pedras.
O volume, provocado pelas pedras brutas e pelo ferro
retorcido, é característica marcante no anjo. Renata,
assim, demonstra um aspecto inerente aos seus trabalhos mais recentes,
em que constrói mosaicos repletos de relevos e texturas.
Na parte onde se localiza o tronco do anjo, percebe-se
ao fundo uma chapa de metal, que na verdade é a base para
a composição da obra. Nela são fixadas as pastilhas
de tonalidade azul celeste e branco, que remetem ao céu,
formando o fundo do quadro. A tonalidade terrosa provocada pela
oxidação, faz da chapa de metal um elemento ainda
mais coerente com o todo. Uma moldura de madeira escura e fina faz
o contorno da obra. Por essas características, não
desconcentra a atenção da figura principal, mas acaba
por fazer parte do seu aspecto rústico.
Diferente da pintura, em que traços se apagam
ou surgem em segundos, o mosaico é encaixe de peças,
uma espécie de quebra cabeças em que o artista por
meios de fragmentos forma um todo. Renata, que é arquiteta,
viu no mosaico a relação com o construir, o montar,
o encaixar, ações muito comuns em seu trabalho com
a arquitetura.
Seus projetos arquitetônicos seguem a tradição
moderna da Bauhaus, estilo que Renata mais se identificou. No mosaico,
ela também deixa transparecer o estilo moderno, no sentido
de inventar um modo de olhar e reproduzir realidade, sem preocupação
direta de transpor para o mosaico a perspectiva e o desenho imitativo.
Mesmo em suas obras anteriores projetadas na prancheta e ligadas
à decoração, nota-se a tendência à
simplificação das formas e a abstração,
o que já era um sinal de ruptura com as obras do início,
ligadas às formas clássicas.
No Anjo, podemos dizer que Renata tornou-se mais
expressionista. Dele emanam, com mais intensidade, aspectos ligados
à subjetividade da vida artística através da
expressão plástica. O anjo de Renata é a prova
concreta de suas palavras, de sua caminhada. É a criação
artística em toda a sua complexidade.
Juliana de Souza Silva
julianadess@bol.com.br
Notas:
1
- Citações do texto “ Relatos e reflexões
sobre o mosaico” discursado por Renata França no VIII
Congresso Internacional de Mosaico, realizado na UFES, em setembro
de 2002.
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