Editorial
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COMENTÁRIOS SOBRE O “SACRE COEUR” DE ATTILIO

ATTILIO COLNAGO, SACRE COEUR – OBJETOS
Galeria Homero Massena, Vitória-ES
20 de novembro de 2002 a 15 de janeiro de 2003

Attilio continua inovando o que é antigo. Sem descolar da tradição, cria um processo atual de conduzir o espectador para o mundo do sagrado e do íntimo. Remete o espectador para o passado mergulhando-o na densa atmosfera do catolicismo e na segunda fase da colonização do estado do Espírito Santo, na que os imigrantes italianos chegaram e se adentraram pela cerrada mata atlântica, esta também poderia estar emoldurada como um ícone da mostra “objetos”, pois é também ícone do passado, foi tão sacrificada pelos homens que lembra o martírio de Cristo.
Após a primeira metade do século XIX e no início do século XX, por absoluta necessidade, impelidas pela miséria que assolava seu país; causadas por guerras e por superpopulação, muitas famílias italianas deixaram sua pátria e enfrentaram uma estafante e cruel travessia do atlântico vindo aportar em terras americanas e brasileiras. Dentre os poucos bens que traziam estavam os álbuns de fotografias, os oratórios, as imagens e os sagrados corações de Maria e de Jesus.

Povo profundamente religioso, estes imigrantes traziam, além de um coração amargurado, uma fé inquebrantável. Somente esta pode explicar as transformações que perpetraram nas terras virgens que receberam, cobertas de matas, infestadas de mosquitos e cobras, longe e distante do que entendiam como civilização, para transformá-las neste Estado que hoje tantos encantos encerra.

Os pioneiros abriam as trilhas, mais tarde transformadas em estradas e depois em rodovias, construíam casebres e capelinhas que foram transmutando em casas e capelas e depois em povoações, cidades e igrejas e catedrais.

A ideologia que permeia toda a mostra é a do sagrado, a ideologia cristã cultuada por diversos povos através da história dos últimos dois milênios. Quem tem sensibilidade, como Attilio, de acompanhar esta epopéia dos imigrantes, seus antepassados, sabe que a fé, a religiosidade e a grande união familiar foram os sustentáculos que motivaram o sucesso da aventura em que se envolveram.

O sofrimento estava sempre presente. Ver sua pátria sem condição de sustentá-los, deixar parte da família e muitos amigos para trás, enfrentar uma dolorida e enfadonha travessia marítima rumo ao desconhecido, se embrenhar na selva para erguer um mundo novo, começar do nada e tendo como companhia a saudade, de tudo e de todos, e o coração partido e martirizado, é este o “objeto” focalizado por Attilio nesta mostra.
A inquebrantável fé religiosa dos imigrantes está ali muito bem exposta através dos ícones da Nossa Senhora das Dores, com suas sete chagas, representadas por um coração sete vezes apunhalado, pelos corações de Jesus e de Maria entronizados em cada lar, bem como por outros símbolos ricamente evocados; rememorações dolorosas e sofridas. Conforme o título da mostra, o símbolo utilizado é o do sagrado coração. A forma com que este é apresentado está fortemente ligada ao sofrimento; leva o espectador a contemplar o sagrado associado à dor, à amargura, ao martírio, deixando transparecer que este, tanto pode ser um sofrimento físico, como um sofrimento psicológico, e os motivos que o causaram podem ser os mais diversos possíveis.

Usa toda a história do martírio de Cristo, e do sofrimento de Maria, para remeter o espectador a refletir sobre as diferentes formas de amarguras pelas quais passam os corações humanos quando estão oprimidos. Para atingir tais objetivos são apresentados corações tridimensionais, moldados em massa, ou resina, de coloração vermelha intensa, sendo que estes estão normalmente mergulhados num contexto de martírios físicos, tais como: colocados sobre camas de faquir, envoltos em arame farpado ou em galhos de espinhos pontiagudos e ameaçadores.
O contexto social abordado é o da fé dos humildes, ou a dos oprimidos e amargurados. Uma análise superficial aparenta que tudo ali exposto é extemporâneo, que aquela arte é uma coisa do passado, que a religião está fora de moda e que o sofrimento desapareceu; nada mais enganoso. A obra mostra que o autor está afinadíssimo com os tempos atuais, apenas lança mão de símbolos consagrados para externar sua manifestação e sua sensibilidade sobre o que ocorre, não só ao seu redor, como também no continente Sul Americano e em muitíssimas partes deste tão sofrido e oprimido mundo do início do terceiro milênio.

Os desentendimentos provocados por motivos religiosos, tanto entre cristãos e muçulmanos, como entre cristãos de diferentes facções, estão no cotidiano dos noticiários e envolvem boa parte do globo terrestre; o mesmo ocorre com o sofrimento: a dor, como disse o poeta “é eterna”. Sob este nome tão pequeno “dor” se esconde um mundo de diferentes tipos de sofrimentos que amarguram os corações, todos ali representados pelo artista: há a dor física, a psicológica, a da incompreensão, a do desentendimento, a do abandono, a da injustiça, a dos descontentamentos, a dos acidentados, a dos que sofrem grandes perdas (principalmente de filhos, marido, mulher, parentes), a dos traídos, a dos agredidos, a dos espoliados e tantas outras que, livros inteiros de prosa ou de poesia já foram escritos sobre a mesma e continuarão enchendo bibliotecas no futuro.

A obra de Attilio é um poema materializado sobre um tema, eterno e permanente, que ronda toda a humanidade, estando em evidência nos tumultuados dias dos tempos presentes. Sua abordagem religiosa é totalmente pertinente.

Vendo tantos corações amargurados, refletindo a dor, a opressão, a incompreensão, a amargura, a falta de carinho, o abandono e o desamor, alguém deixa uma questão a flutuar na atmosfera da galeria; qual é a atualidade desta mostra? A princípio parece extemporânea. O início do terceiro milênio parece que remete a humanidade para o futuro, para o espaço, para a comunicação por satélites, por celulares, por Internet, por naves modernas e por problemas inversos daqueles enfrentados pelos pioneiros e desbravadores. Toda tentativa de apagar o passado é apenas uma camuflagem, uma tênue cobertura sobre a realidade dos fatos; pode parecer num olhar incauto que a dor foi banida dos corações modernos, ledo engano, ela é eterna, tão velha quanto o mundo e tão perene quanto ele, está aí a rondar e penetrar os corações; as chagas por onde entra são: a ingratidão, a incompreensão, o desamor, as injustiças, a solidão, o desprezo, os desentendimentos de todos os tipos, a indiferença e tudo o mais que oprime, que faz o ser humano sentir insatisfeito, triste, amargurado.

Assim como o romancista tem no romance sua forma de se expressar e o poeta se manifesta através da poesia, o artista se manifesta através de suas técnicas, habilidades e imaginações artísticas. Desta forma fica mais fácil entender o trabalho Sacre Coeur – Objetos, é a poesia materializada do autor, para o sentimento da fé dos humildes e da dor que sempre está presente no cotidiano, dor de qualquer espécie, principalmente a dor psicológica, aquela provocada pelos sentimentos feridos. Para trazer à tona esta dura realidade, ele lança mão de símbolos tradicionais de amargura, de tortura, de ingratidão e de incompreensão, como tal, nada mais explícito e completo que a história do martírio de Cristo, profético, traído por Judas, abandonado pelos acovardados seguidores, julgado pelo poder discricionário e ostensivo, condenado por uma turba ignara equivocada e irresponsável, torturado por soldados servis e levado a uma morte que passou à história como das mais angustiantes e cruéis.

Attilio lança mão de todos os símbolos associados à morte de Cristo para chamar a atenção para o que deseja externar e levar o espectador a refletir. Pregos, espinhos, instrumentos de torturas, chagas, corações trespassados e toda uma iconografia criada por dois mil anos de cristianismo ali estão, colocando na forma de um poema materializado a manifestação do artista.

Cada um tem sua forma de se expressar, a literatura, a poesia, a representação teatral, a música, o canto, a pintura, a escultura, a instalação etc, desta forma Sacre Coeur – Objetos é uma forma a mais, encontrada pelo artista para externar aquilo que sente e que deseja levar o espectador a refletir sobre este sentimento. Analisando sob este contexto, o trabalho atinge seu objetivo, embora fique parecendo para alguns uma forma extemporânea de abordagem do tema. A dor, qualquer que seja ela, como disse o compositor e poeta Chico Buarque “é tão velha que é capaz de morrer”, mas nesta mostra está ali, viva, encarnada e pulsante como um coração. Attilio recusa, por enquanto, a enterrá-la.

Dante José de Araújo
dante@npd.ufes.br