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Editorial
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REAL TEMPO
PROJETO OCUPAÇÃO RUÍDO
Museu de Arte do Espírito Santo, Vitória-ES
20 de dezembro de 2002 a 20 fevereiro de 2003
Artista: José Cirillo
Obra: Anotações sobre o tempo, 2002
Feno compactado com vidro e tempo – 364 x 617 x 1464 cm
Poucas são as atividades que aos homens conseguem
proporcionar um verdadeiro plano de introspecção neste
universo de automatismo que nos impõe o cotidiano social.
Alguns poucos minutos de distanciamento do ambiente comum; momentos
de tranqüilidade e silêncio, propícios a reflexões,
devaneios e questões vãs... ao nobre exercício
do pensar e da experiência de ser e estar no mundo.
É esperançoso acreditar que a produção
artística seja uma dessas dignas faculdades; que, como princípio
ordenador, permita o domínio do caos exterior e interior
no homem. Pois o desconcertante, o assustador e o inconcebível
da vida só podem ser ordenados ao receber forma.
E dessa maneira é que a arte de Cirillo dá
lugar ao universo metafísico, materializando imagens que
o artista pensa para habitar a intimidade do mundo.
Seu mais recente trabalho, Anotações
Sobre o Tempo, representa uma continuidade no desenvolvimento da
poética tridimensional tratada por Cirillo em exposições
anteriores. Utiliza-se do feno, a mesma matéria orgânica
presente em diversas outras obras, como do Projeto Menir (integrante
da Bienal de Artes Visuais do Mercosul em 2001), de Oscilações
Sobre um Quadrado (parte da coletiva Desiderata promovida pelo Museu
Vale do Rio Doce), e de Anotações Sobre o Tempo (obra
homônima, apresentada em Exposição Comemorativa
dos 50 anos do Centro de Arte da UFES em 2002). Com esse trabalho,
sobretudo pela insistência no título, o artista reafirma
o propósito de uma criação reflexiva e intimista,
que busca permear os profundos questionamentos e concepções
acerca da existência.
Anotações Sobre o Tempo faz parte
da mostra coletiva Ruído; é composta por um conjunto
de cinco peças e ocupa toda a sala do andar térreo
do Museu de Arte do Espírito Santo. Trata-se de grandes balcões
de madeira que, pesados e vigorosos, abrigam o feno seco entre delgadas
paredes de vidro.
Cada peça mede aproximadamente 150 x 70 x
90 cm e é formada, basicamente, por um corpo de vidro –
onde o feno é compactado – integrado a uma estrutura
de madeira que o envolve e liga-se ao solo por meio de quatro bases.
A matéria orgânica preenche todo o interior do corpo
de vidro e se molda em função de suas paredes que,
por todos os lados, exercem pressão. O objeto aprisiona a
vida, limitada pelo invisível.
Ao precisar as dimensões do conjunto segundo
as medidas do recinto (364 x 617 x 1464 cm), o artista demonstra
sua preocupação com o espaço, concebendo a
obra como uma instalação em que a ordenação
de cada uma das partes é determinante. E, ao definir material
e técnica utilizada como “feno compactado com vidro
e tempo”, deixa claro sua compreensão do tempo como
matéria.
As peças mantêm em sua proporção
a escala do humano, o que dá força descomunal ao conjunto,
pois nesta escala é que se organiza e funciona nossa percepção.
Entretanto, apesar da força, não há contraste
em formas ou cores. E muito de sua expressividade contida deve-se,
justamente, às cores suaves da madeira e do feno, que diferem
apenas em tons. Os objetos se configuram de modo estável
e harmônico, como se quisessem suprimir todas as tensões.
Tudo permanece completamente imóvel, qual uma cena capturada
de um instante indivisível de tempo. Nada parece familiar
nesse ambiente em que imensa força existe somente em potência.
É a imobilidade da matéria e a simplicidade
absurda que despertam o sentimento de se estar além das coisas
da terra. Pois é legítimo esperar que o contraste
com as necessidades lógicas e físicas desperte a misteriosa
necessidade metafísica. Contudo, essa idéia de transcendência
do mundo físico está muito mais relacionada a uma
imersão nas reflexões – constantemente abandonadas
– sobre o Tempo, a Existência e a simplicidade das relações
que mantemos com o meio do que a qualquer atribuição
divina.
A série apresenta alguns fatos instigantes,
que despertam interesse sobre sua finalidade ao mesmo tempo em que
suscitam questões acerca da intencionalidade do artista.
É possível notar que existem, em algumas das massas
de fenos, tipos de naturezas distintas, diferenciando-se ora pela
intensidade da cor e força das fibras, ora pelas formas que
criam. Nota-se também a presença de dois balcões
de madeira que, pelos corpos maiores, se diferenciam dos demais
no fundo da sala. Todas essas sutilezas no rigor e na miudeza dos
objetos, retidas pelo cuidado da observação, nos obrigam
a tratá-los de modo peculiar, preservando a individualidade
intrínseca a cada um.
O que se parece ver é uma imagem de correspondência
a pensamentos, ao que se pode conceber como uma busca de ordenação
do desconhecido pela mente, um exercício atroz. Como se fosse
possível trazê-los para o mundo físico e aqui
firmá-los de maneira melhor do que as palavras podem dizer
ou do que a fluidez do pensar nos permite. Essa poética da
ordenação surge do profundo contato com a matéria,
substância sensível da arte contemporânea. Pois,
enquanto outras disciplinas debruçam-se sobre problemas teóricos
cuja matéria-prima é o pensamento abstrato, as questões,
nas artes plásticas, estão enraizadas no contato direto
com o mundo material, com suas especificidades e suas formas.
Dispostas em intervalos regulares, e sob rígido
alinhamento, as peças conferem à sala aspecto austero,
quase monumental; como fosse desejado transmitir à posteridade
uma memória de fato, cujo intento não se pode supor.
Cria-se um autêntico e conturbante imaginário, repleto
de poder e intensidade, de onde irradia a obscuridade de um novo
e misterioso sistema metafórico. Uma atmosfera de busca fora
do mundo visível, em que somente o mistério pode trazer
alguma resposta.
O fantástico é suscetível à
mesma materialização que a realidade visível,
porém a vida é expulsa de tudo, de modo que tempo,
espaço e pensamentos parecem estranhamente solidificados
dentro do museu.
Miro Soares
miro@mirosoares.com
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